Vinho · Wine

Bourdeaux wines will become perfume?

Photography by Carla Rocha

The news that has gone viral in the world of wine in recent days is that France will destroy 80 million gallons of wine, and part of this amount is from Bourdeaux, known to be one of the most famous regions in the production of this drink. This operation will cost the French coffers about 200 million euros and alcohol will be used to make other items, such as cleaning, hygiene and perfumery products.

The question is: what explains such waste of wine? The reason would be the surplus of wines caused by the decrease in wine consumption in the country. The remaining effects of the pandemic, the war in Ukraine and the rising price of inputs for wine production (such as fertilizers and bottles), high inflation, the climate crisis and changing consumption habits, especially among the youngest, are some of the causes of the producers’ difficulties and of the surplus of wines.

If the demand for wines decreases, prices also fall. This is the logic of the market. Within this same logic is waste. Wasting all this amount produced to be able to balance the price of wine is not an absolutely new measure and nor restricted to the wine world. But times have changed.

It is important to remember that wine production is linked to a series of negative impacts. The climate crisis is becoming increasingly fierce and this is also reflected in wine production. The production of this wine to be destroyed involved environmental, social, economic costs and its transformation into other materials, will imply even more of this costs.

The crisis involving winemaking in France can be used to rethink wine production, seeking a more consistent orientation not only with the ongoing changes related to consumption, but also with the wider crisis that we are experiencing. Turning wine into perfume is just a palliative, it’s like trying to cover the sun with a sieve.

Vinhos de Bourdeaux vão virar perfume?

A notícia que viralizou no mundo do vinho dos últimos dias é que a França destruirá 80 milhões de galões de vinho, sendo que parte desse montante é de Bourdeaux, sabidamente uma das regiões mais afamadas na produção dessa bebida. Essa operação custará aos cofres franceses cerca de 200 milhões de euros e o álcool será aproveitado para a confecção de outros itens, como produtos de limpeza, higiene e perfumaria.

A pergunta é: o que explica tal desperdício de vinho? A razão seria o excedente de vinhos causado pela diminuição do consumo dessa bebida no país. Os efeitos remanescentes da pandemia, a guerra no Ucrânia e o aumento de preço dos insumos para a produção de vinhos (como o de fertilizantes e de garrafas), a alta da inflação, a crise climática e mudança de hábitos de consumo, especialmente entre os mais jovens, seriam algumas causas das dificuldades dos produtores e do excedente de vinhos.

Se a procura por vinhos diminui, os preços também caem. Essa é a lógica do mercado. Dentro dessa mesma lógica está o desperdício. Desperdiçar todo esse montante produzido para poder equilibrar o preço do vinho não é uma medida absolutamente nova e nem restrita ao mundo dos vinhos. Mas os tempos são outros. 

É importante lembrar que a produção de vinhos está relacionada a uma série de impactos negativos. A crise climática está cada vez mais acirrada e isso se reflete também na produção vitivinícola. A produção desse vinho a ser destruído envolveu custos ambientais, sociais, econômicos e sua transformação em outros materiais, implicará ainda em mais custos dessa ordem. 

A crise envolvendo a vitivinicultura na França pode ser aproveitada para se repensar a produção de vinhos, visando uma orientação mais condizente não apenas com as mudanças em curso relacionadas ao consumo, mas também com a crise de ordem mais ampla que estamos vivendo. Transformar vinho em perfume é somente um paliativo, é como tentar cobrir o sol com uma peneira. 


Comida · Food

Influencers: stop telling me what I should and shouldn’t eat!

Photography by Carla Rocha

My interest in food has turned my social media into an endless proliferation of images, videos and disjointed discourse on food. The algorithms direct me to a totally incoherent succession of posts with content that includes “practical recipes” for dishes based solely on ultra-processed foods, step-by-step instructions on how to prepare vegan cheeses or plant-based milk at home, indications of where you can buy ingredients or eat dishes considered traditional in certain regions or countries, reports on the culinary secrets of certain restaurants or chefs, countless culinary “pseudo-critics” giving tips and opinions on restaurants and dishes. 

In addition, and what impresses me most, there is also a vast amount of prescriptions and diets presented by a growing variety of “influencers” based on nutritional discourse, proclaiming what we should and shouldn’t eat in order to be healthier.

We can’t say that the proliferation of discourses around food is new. But it can be said that digital influencers have contributed to the dissemination of a lot of inconsistent information about food. They are individuals from different fields who often believe and want to make us believe that they have found a magic formula for health through food. There are also those willing to warn us of the health risks linked to the consumption of certain foods. 

The other day an “influencer” appeared in my feed warning of the risks, including liver failure, of drinking orange juice. The risks were linked to excess fructose. I thought it was a scary speech! Should I now think twice before drinking orange juice? Luckily, even though I’ve lost count of all the orange juices I’ve drunk throughout my life, my liver seems to be doing fine. 

In no previous era has there been such a diversity of food available. At the same time, especially in recent decades, our food choices have come under increasing pressure as a result of the spread of certain food ideologies. Social media has played a fundamental role in disseminating these ideologies, among which nutritionism is gaining more and more strength. 

The term nutritionism was coined by Australian researcher Gyorgy Scrinis, author of the book Nutritionism, the science and politics of nutritional counseling (2013).  By combining the words nutrition and reductionism, this author argues that reducing food to nutrients not only favours the food industry with its products and supplements that promise to meet all nutritional needs, but also promotes decontextualized eating habits and unhealthy eating patterns. 

That dessert we get used to eating at the weekend lunch with the family, the pizza we share with friends after work, the cereal that is part of our breakfast can all be summed up as portions of proteins, fats and carbohydrates? If we look at it from the point of view of Nutritionism, the answer to this question can be an absolute affirmation. 

From an early age, we learn that certain foods are important for our diet. Consuming vegetables, legumes, meat, eggs, fruit, cereals and other grains is considered synonymous with a balanced and healthy diet. But we mustn’t forget that we don’t eat simply because we’re hungry, because we need to nourish our bodies or because we have access to certain foods. Eating is also a pleasurable act, which awakens our senses through the organoleptic qualities of food (taste, smell, shape, color, consistency, etc.) and also involves various motivations, such as socializing with other people, celebrating an event, remembering the past or give continuity to certain habits that are part of our identity. 

Advances in nutritional science are certainly helping to make us healthier. The problem lies with those who misappropriate the discourses of this science in order, above all, to promote themselves at the expense of misinformation. If we possess a “wisdom of the body” that allows our organism to recognize or learn to identify foods that are good for us and those that are bad for us, as sociologist Claude Fischler argues, better to trust it than many influencers. 

Influencers: parem de dizer o que eu devo e o que eu não devo comer!

Meu interesse por comida transformou minhas mídias sociais em uma proliferação interminável de imagens, vídeos e discursos desencontrados sobre alimentação. Os algoritmos me direcionam para uma sucessão totalmente incoerente de postagens com conteúdos que incluem “receitas práticas” de pratos unicamente à base de ultraprocessados, um passo-a-passo de como se pode preparar em casa queijos veganos ou leite vegetal, indicações de onde se pode comprar ingredientes ou comer pratos considerados tradicionais em determinadas regiões ou países, relatos dos segredos culinários de alguns restaurantes ou chefs, inúmeros “pseudo-críticos” culinários dando dicas e pareceres sobre restaurantes e pratos. 

Além disso, e o que mais me impressiona, há ainda uma vasta quantidade de prescrições e dietas apresentadas por uma variedade crescente de “influenciadores” fundamentadas no discurso nutricional, proclamando o que devemos ou não ingerir para sermos mais saudáveis.

Não se pode dizer que a proliferação de discursos em torno da alimentação é uma novidade. Mas se pode afirmar que influenciadores digitais vêm contribuindo para a disseminação de muitas informações sem coerência alguma em torno da alimentação. São indivíduos de áreas diversas que muitas vezes acreditam e querem nos fazer acreditar que encontraram uma fórmula mágica de saúde através da alimentação. Há também aqueles dispostos a nos alertar para os riscos à saúde ligados ao consumo de certos alimentos. 

Outro dia apareceu no meu feed uma “influenciadora” alertando para os riscos, inclusive de falência do fígado, de se ingerir suco de laranjas. Os riscos estariam ligados ao excesso de frutose. Pareceu-me um discurso assombroso! A partir de agora devo pensar duas vezes antes de beber um suco de laranjas? Por sorte, mesmo perdendo a conta de todos os sucos de laranja que bebi ao longo da minha vida, parece que vai tudo bem com meu fígado. 

Em nenhuma época anterior tivemos tanta diversidade de alimentos disponível. Ao mesmo tempo, sobretudo nas últimas décadas, nossas escolhas alimentares têm sofrido uma pressão cada vez maior em consequência da difusão de algumas ideologias alimentares. As mídias sociais têm tido um papel fundamental na disseminação dessas ideologias, dentre as quais o nutricionismo vem ganhando cada vez mais força.

O termo nutricionismo foi cunhado pelo pesquisador australiano Gyorgy Scrinis, autor do livro Nutricionismo, a ciência e a política do aconselhamento nutricional (2013).  Através da união das palavras nutrição e reducionismo, esse autor defende que reduzir a alimentação a nutrientes, além de favorecer sobretudo a indústria alimentar com seus produtos e suplementos que prometem cumprir todas as necessidades nutricionais, promove hábitos alimentares descontextualizados e padrões alimentares não saudáveis. 

Aquela sobremesa que nos habituamos a comer no almoço de final de semana com a família, a pizza que dividimos com os amigos depois do trabalho, o cereal que faz parte do nosso café da manhã podem ser resumidos a porções de proteínas, gorduras e carboidratos? Se olharmos do ponto de vista do nutricionismo, a resposta a essa pergunta pode ser uma afirmação absoluta. 

Desde cedo, aprendemos que alguns alimentos são importantes para a nossa dieta. Não é de agora que o consumo de verduras, legumes, carnes, ovos, frutas, cereais e outros grãos é considerado sinônimo de uma dieta equilibrada e saudável. Mas não podemos esquecer que não comemos simplesmente porque temos fome, porque é necessário nutrir nosso corpo ou porque temos acesso a determinados alimentos. Comer é também um ato prazeroso, que desperta nossos sentidos a partir das qualidades organolépticas dos alimentos (gustativas, olfativas, de forma, de cor, e de consistência, etc.) e ainda envolve motivações diversas, como socializar com outras pessoas, comemorar algum evento, recordar o passado ou dar continuidade a certos hábitos que integram nossa identidade.

Os avanços da ciência nutricional certamente contribuem para nos deixar mais saudáveis. O problema reside em quem se apropria indevidamente dos discursos dessa ciência para, acima de tudo, se promover às custas da desinformação. Se possuímos uma “sabedoria do corpo” que permitia ao nosso organismo reconhecer ou aprender a identificar alimentos que nos fazem bem e os que nos fazem mal, como argumenta o sociólogo Claude Fischler, melhor confiar nela do que em muitos influencers. 

Comida · Food

Banana feeds the body and much more

Photography by Carla Rocha

I’ve always enjoyed writing and food has been an interest of mine from an early age.  It wasn’t just an interest in learning how to handle food, tasting recipes or understanding the chemistry that happened inside the pots. It was something that went beyond that.

I remember that on one occasion my younger sister, who thought she didn’t have much skill with writing, asked me to write an essay for her school. I must have been about twelve years old and I accepted without blinking. My first written to order? More than that! They say that we should look back to childhood to understand the choices we make throughout our lives. Well, looking at it this way, maybe I was taking my first steps as a food writer. 

The essay had a free theme. So I decided to write entirely about banana. I remember that it was a very funny, humorous and very provocative text. I made a sort of elegy to the banana, put it on a majestic pedestal, even using some rhymes.

I don’t remember exactly what led me to choose this theme. Apart from my interest in food, maybe it was because it seemed easy to write about a basic item of my daily life, something that was quite common and also valued in our family diet in a tropical and banana-producing country like Brazil.

At that time I had no idea that, just like in Brazil, bananas are not only valued for their taste or nutritional value, but are a staple food in many regions of many countries. It is also the most consumed fruit around the world. Being a very versatile food, banana can be eaten raw, boiled, fried, and also compose recipes for cakes, sweets, breads and various dishes. 

Its history is more than seven thousand years old and it was one of the first plants cultivated by humans. From Asia the banana was taken to Africa and other countries around the world. Similar to what happened with many other foods, the spread of banana is also directly linked to colonization processes. In Brazil, for example, this fruit began to be cultivated from the 15th century, brought by the Portuguese. 

The development of transportation and improved refrigeration techniques were also factors that contributed to the transformation of banana from an exotic and luxury food to an everyday food. In the United States, it was precisely from the refrigerated transportation by railroads and faster ships that bananas appeared in the markets from the 19th century. 

In addition to nourishing the body, banana also feed imaginations. Lorna Piatti-Farnell describes very well and presents several examples of how the banana has not only integrated mythological tales, but has also become an icon present in popular culture through music, television, comics and also in the world of fashion, art, inspiring paintings, musical pieces and movie soundtracks. Its playful shape, phallic form and association with the exotic have also contributed to its popularity around the world. 

Today I think it was not unusual to choose a fruit like the banana (Musa) to be, literally, my inspirational muse for that text. The banana is not only a sweet, delicious fruit or the one we had the most access to in childhood. Its uniqueness perhaps lies in its omnipresence and, at the same time, in being something that is part of the good and simple things of life without distinction of social class.

Many years later, I am again dedicating a few lines to this fruit, which continues to nourish me both from a physical and imaginary point of view. From that first text, I remember the pleasure of writing about the banana and also the satisfaction of knowing that the text had been approved by my sister’s teacher. I don’t know if this was decisive for me to never lose my taste for eating bananas, but I am sure that it contributed to the banana and so many other foods to continue as sources of inspiration for my writing.

A banana alimenta o corpo e muito mais

Sempre gostei de escrever e a comida desde cedo me despertava muito interesse.  Não era apenas um interesse em aprender a manusear os alimentos, a provar receitas ou entender a química que acontecia dentro das panelas. Era algo que ia mais além.

Lembro-me que em uma oportunidade minha irmã mais nova, que pensava não ter muita habilidade com a escrita, pediu-me para escrever uma redação para a sua escola. Eu devia ter uns doze anos e aceitei sem pestanejar. Minha primeira escrita sob encomenda? Mais do que isso! Dizem que devemos olhar para infância para entender as escolhas que fazemos ao longo da vida. Pois bem, olhando assim, talvez ali eu estivesse trilhando meus primeiros passos para escrever sobre comida. 

O tema da redação era livre. Decidi então escrever inteiramente sobre a banana. Lembro-me que era um texto muito divertido, bem humorado e muito provocativo. Eu fiz uma espécie de elegia à banana, a coloquei em um pedestal majestoso, usando até algumas rimas.

Não me lembro exatamente o que me levou a escolher esse tema. Além de meu interesse pela comida, talvez fosse porque me parecia fácil escrever sobre um item básico do meu cotidiano, algo que era bastante comum e também valorizado na nossa alimentação familiar em um país tropical e produtor de bananas, como é o Brasil.

Nessa época ainda não fazia ideia de que, assim como no Brasil, a banana não é apenas valorizada por seu sabor ou valor nutricional, mas é um alimento básico em muitas regiões de diversos países. É também a fruta mais consumida ao redor do mundo. Sendo um alimento bastante versátil, a banana pode ser consumida crua, cozida, frita, e também compor receitas de bolos, doces, pães e pratos variados. 

Sua história tem mais de sete mil anos e foi uma das primeiras plantas cultivada pelos humanos. Da Ásia a banana foi levada para a África e outros países ao redor do mundo. Similar ao que ocorreu com muitos outros alimentos, a disseminação da banana está também diretamente ligada aos processos de colonização. No Brasil, por exemplo, essa fruta passou a ser cultivada a partir do século 15, trazida pelos portugueses. 

O desenvolvimento dos transportes e de técnicas de refrigeração mais aprimoradas foram fatores que também contribuíram para a transformação da banana de um alimento exótico e de luxo para um alimento cotidiano. Nos Estados Unidos, foi justamente a partir do transporte refrigerado por ferrovias e navios mais rápidos que as bananas apareceram nos mercados a partir do século 19.

Além de nutrir o corpo, a banana também alimenta imaginários. Lorna Piatti-Farnell descreve muito bem e apresenta diversos exemplos de como a banana integrou não apenas contos mitológicos, mas tornou-se ainda um ícone presente na cultura popular através da música, televisão, quadrinhos e também no mundo da moda, da arte, inspirando pinturas, peças musicais e trilhas sonoras de filme. Sua forma divertida, seu formato fálico e sua associação com o exótico também contribuíram para a sua popularidade ao redor do mundo. 

Hoje penso que não foi algo incomum eleger uma fruta como a banana (Musa) para ser, literalmente, minha musa inspiradora para aquele texto. A banana não é somente uma fruta doce, deliciosa ou a que tínhamos maior acesso na infância. Sua singularidade talvez resida na sua onipresença e, ao mesmo tempo, em ser algo que faz parte dascoisas boas e simples da vida sem distinção de classe social. 

Muitos anos depois, estou novamente dedicando algumas linhas à essa fruta, que segue me nutrindo tanto de um ponto de vista físico quando do imaginário. Daquele primeiro texto, guardo na memória o prazer de escrever sobre a banana e também a satisfação de saber que o texto tinha sido aprovado pela professora de minha irmã. Não sei se isso foi decisivo para que eu nunca tenha perdido o gosto por comer bananas, mas tenho certeza que contribuiupara que a banana e outros tantos alimentos sigam como fontes de inspiração para a minha escrita.