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A market in Sicily and the local culinary grammar

Photography by Carla Rocha – Market in Sicily

The author of the phrase “markets are the stomachs of cities” remains unclear, but this definition resonates deeply when we look at these places. In them, we can closely observe the eating habits of the local population, the seasonality of certain foods, and the basic ingredients of local and regional recipes. What’s more, these spaces reveal a great deal about everyday life in cities.

In recent years, we have witnessed a phenomenon of gentrification in various food markets around the world. Many of them have been transformed into places that more closely resemble gourmet boutiques, in line with the growing trend toward the “gourmetization” of food. This in turn can be interpreted as a process of homogenization in which these spaces lose their uniqueness, history and identity. They become “non-places”, as the anthropologist Marc Augé would define them.

Photography by Carla Rocha – variety of eggplants

Phography by Carla Rocha – variety of beans

Whenever I visit a new city, I take the time to explore a local market. It’s as if in these places I find clues to unraveling the grammar of a region’s food culture. It is a rare privilege these days to find a market with local products, away from the tourist crowds and frequented mainly by the local population.

Recently, while exploring the charming city of Messina in Sicily, southern Italy, I had the opportunity to visit the Sant’Orsola market. Although it’s a small market, with proportions in the “human dimension,” as a friend would say, it made me think about the fundamental role that markets play in cities.

Photography by Carla Rocha – Caper

As I walked around the stalls, the vendors proudly offered me their wares. One of the regulars noticed my interest in capturing the essence of the place and willingly stood in front of my camera to be photographed, assuring me that he would be there if I needed anything. Amidst the variety of local products I had recently discovered, I felt at home.

Messina is a relatively small city of about 250,000 people, but its history is rich and fascinating. Situated on the shores of the Mediterranean Sea, Messina has always been a crossroads for other regions of Italy, which over the centuries has favored invasions and the influence of various peoples, such as the Phoenicians, Greeks, Romans, Byzantines, Arabs, Turks, Spaniards and French, which is vividly reflected in its cuisine.

Photography by Carla Rocha – Fish cuts

In the last two centuries, the city has faced earthquakes, malaria outbreaks and the devastation caused by the Second World War. The market of Sant’Orsola is an essential part of this history, where you can find foods that are a testimony of Sicily’s history, such as salted capers, olives, Stocco fish, prickly pears, a variety of aubergines, peppers and tomatoes, as well as a variety of seasonal fruits and vegetables.

Photography by Carla Rocha Sant’Orsola Market

Despite its precarious construction, the market of Sant’Orsola is a living part of Sicily, a region that in a certain way concentrates the memory of the past and the resistance to change. It is the antithesis of the words of Giuseppe Tomasi di Lampedusa in “The Leopard” (Il Gattopardo), when he referred to the processes of modernization in Sicily in the 19th century: “If we want everything to remain as it is, everything must change.”

Nevertheless, this market is a living testimony to Sicily’s rich culinary heritage and the resilience of its food culture in the face of changing times.

Um mercado na Sicília e a gramática culinária local

A autoria da frase “os mercados são o estômago das cidades” permanece incerta, mas essa definição ressoa de maneira profunda quando consideramos esses locais. Neles, podemos observar de perto os hábitos alimentares da população local, a sazonalidade de certos alimentos e os ingredientes fundamentais das receitas locais e regionais. Além disso, esses espaços revelam muito sobre a vida cotidiana das cidades.

Nos últimos anos, temos testemunhado um fenômeno da gentrificação em diversos mercados de alimentos ao redor do mundo. Muitos deles têm se transformado em locais que mais se assemelham a butiques gourmet, alinhados com a crescente tendência de “gourmetização” da alimentação. Isso, por sua vez, pode ser interpretado como um processo de homogeneização, no qual esses espaços perdem sua singularidade, sua história e sua identidade. Eles se tornam “não-lugares”, como definiria o antropólogo Marc Augé.

Sempre que visito uma nova cidade, reservo um tempo para explorar algum mercado local. É como se nesses lugares eu encontrasse pistas para desvendar sobretudo a gramática da cultura alimentar de uma região. Encontrar um mercado com produtos locais, longe do agito turístico e frequentado principalmente pela população da cidade, é um privilégio raro nos dias de hoje.

Recentemente, enquanto explorava a encantadora cidade de Messina, na Sicília, sul da Itália, tive a oportunidade de conhecer o mercado Sant’Orsola. Embora seja um mercado pequeno, com proporções na “dimensão humana”, como diria um amigo, ele me levou a refletir sobre o papel fundamental que os mercados desempenham nas cidades.

Enquanto percorria as barracas, os comerciantes me ofereciam seus produtos com orgulho. Um dos frequentadores percebeu meu interesse em capturar a essência do local e se colocou voluntariamente diante da minha câmera, pronto para ser fotografado, assegurando-me que estaria à disposição caso eu precisasse de algo. Em meio à variedade de produtos locais que recentemente havia descoberto, me senti em casa.

Messina é uma cidade de porte relativamente pequeno, com cerca de 250 mil habitantes, mas sua história é rica e fascinante. Localizada às margens do Mediterrâneo, Messina sempre foi um ponto de passagem para outras regiões da Itália, o que ao longo dos séculos favoreceu invasões e, em consequência, a influência de diversos povos, como os fenícios, gregos, romanos, bizantinos, árabes, turcos, espanhóis e franceses, refletindo-se vividamente em sua culinária.

Nos últimos dois séculos, a cidade enfrentou terremotos, surtos de malária e a devastação causada pela Segunda Guerra Mundial. O mercado Sant’Orsola, em sua essência, encapsula essa história, incorporando os alimentos que são testemunhas da trajetória da Sicília, como alcaparras salgadas, azeitonas, peixe stocco, figo-da-índia, variedade de berinjelas, pimentões e tomates, além de uma diversidade de frutas, verduras e legumes da estação.

Apesar da sua edificação precária, o mercado Sant’Orsola é uma parte viva da Sicília, uma região que, de certa forma, concentra a memória do passado e uma resistência à mudança. Ele representa uma antítese das palavras de Giuseppe Tomasi di Lampedusa em “O Leopardo” (Il Gattopardo), quando se referiu aos processos de modernização da Sicília no século XIX: “Se queremos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude.”

Mesmo assim, esse mercado não deixa de ser um testemunho vivo da rica herança culinária da Sicília e da resiliência de sua cultura alimentar em face das transformações do tempo.

Comida · Food

Pastéis de nata: my taste of Lisbon

Photography by Carla Rocha – Pastel de nata

When we arrive in a new city, especially in another country, we begin by observing its main features, noticing its sounds, its smells, the flow of people, the environment, until we begin to become familiar with the place. The food we find in that city is an important element because it can make a decisive contribution to this familiarization. For me, one of the most important examples of this is pastel de nata, the most famous sweet in Portugal, which has undoubtedly contributed to my familiarity with the city of Lisbon.

Pastel de nata is a dessert made of puff pastry, sugar, egg yolk and cream. It is usually eaten warm, after the ritual of sprinkling it with a little sugar and cinnamon. Eating a pastel de nata with an espresso or port wine is an absolutely perfect combination!

Lisbon is a vibrant city, always with new gastronomic innovations. The pastel de nata is like a visiting card for the city, at the same time representing a certain permanence in the face of so many changes, through its aroma, taste and texture, based on a recipe that has been repeated since the 19th century.

Photography by Carla Rocha – preparation of the pastel de nata

In some of the pastry shops in Lisbon that specialize in pasteis de nata, while you eat the sweet, you can watch some of the stages of its preparation from behind a counter. You can see the puff pastry being placed in small moulds and the next stage, when these moulds are filled with a slightly creamy filling and then baked.

Photography by Carla Rocha – preparation of the pastel de nata

There are those who argue that there are subtle differences in the pasteis de natas of Lisbon’s main pastry shops. And perhaps it is precisely the search for the best pasteis de nata in the city that makes tourists wander from place to place to taste the sweet. This journey turns this popular Portuguese monastic pastry into an irresistible addiction.

Over time, some foods are updated, reinterpreted or varied with new ingredients. There are some foods that don’t need any of this. Pastel de natas is one of them. The permanence of its centuries-old flavor is always an invitation to any palate to enjoy an unforgettable taste of Lisbon.

Pastéis de nata: o meu sabor de Lisboa 

Quando chegamos em uma nova cidade, especialmente de um outro país, iniciamos por observar seus traços principais, perceber seus sons, seus aromas, o fluxo de pessoas, os ambientes, até começarmos a nos familiarizar com aquele lugar. A comida que encontramos nessa cidade é um elemento importante porque pode contribuir de modo decisivo para essa familiarização. Para mim, um dos exemplos mais significativos disso é o pastel de nata, o doce mais referenciado em Portugal e que, sem dúvidas, contribuiu para a minha familiarização com a cidade de Lisboa. 

O pastel de nata é um doce preparado à base de massa folhada, açúcar, gemas e nata. Geralmente, come-se quente, depois de obedecer a um ritual de polvilhá-lo com um pouco de açúcar e canela. Comer um pastel de nata com um café expresso ou com um vinho do porto é uma combinação absolutamente perfeita!  

Lisboa é uma cidade vibrante, sempre com diversas novidades gastronômicas. O pastel de nata é como um cartão de visitas da cidade, ao mesmo tempo em que representa uma certa permanência diante de tantas mudanças, através do seu aroma, sabor e textura, a partir de uma receita que tem sido repetida desde o século 19.

Em algumas das confeitarias especializadas em pasteis de nata em Lisboa, enquanto se ingere o doce, é possível assistir a algumas etapas do seu preparo por detrás de um balcão. Podemos assistir à distribuição da massa folhada em pequenas forminhas e sua etapa seguinte, quando essas forminhas são preenchidas com um recheio ligeiramente cremoso, para então serem levadas ao forno. 

Acompanhar essas etapas de preparação do pastel de natas, a série de forminhas sendo preenchidas manualmente e de maneira uniforme, é algo quase hipnotizante. E é inevitável nos perguntarmos: Como um doce preparado de maneira tão simples pode ser tão delicioso? Mas essa ideia de simplicidade que aqueles gestos transmitem pode ser enganosa, já que a composição exata dos ingredientes desse doce é considerada um segredo guardado a sete chaves. 

Há quem defenda diferenças sutis nos pasteis de natas entre as principais confeitarias especializadas de Lisboa. E talvez seja justamente a busca pelo melhor pastel de nata dessa cidade o que provoca turistas a perambularem por diferentes locais para provar o doce sucessivamente. Essa jornada faz com que esse doce popular da doçaria conventual portuguesa logo se transforme em um vício irresistível. 

Ao longo do tempo, algumas comidas se atualizam, recebem releituras ou variações com novos ingredientes. Existem algumas comidas que não necessitam nada disso. O pastel de natas é uma delas. A permanência do seu sabor secular é sempre um convite a qualquer paladar para desfrutar um sabor inesquecível de Lisboa.

Comida · Food

Even the land of pasta and pizza is surrendering to gluten-free products

Photography by Carla Rocha – pasta gluten-free – supermarket in Italy

In Italy, as in many other countries, the consumption of gluten-free foods is on the rise. Pizzerias, specialty shops, bakeries, supermarkets and even pharmacies, from the north to the south of the country, are offering increasingly diverse options of these products.

According to data from the Italian Celiac Association, there are just over 241,000 people with celiac disease in the country. However, it is estimated that the disease affects 1% of the population in Italy, as it does worldwide. There are therefore approximately 400,000 undiagnosed cases.

The total of 1% of the population with celiac disease is not enough to justify the increase of around 30% per year in the consumption of gluten-free products in the country. The widespread dissemination of a culture aimed at maintaining healthier lifestyles, in which many foods, such as those containing gluten, have been increasingly demonized even by those without celiac disease or any intolerance to this protein, perhaps explains the growing popularity of these products in the land of pasta and pizza.

Photography by Carla Rocha – Pastas gluten-free – Supermarket in Italia

It seems strange that a country so entrenched in its cuisine and certain ingredients, especially those related to the production of its main culinary items, such as wheat flour, the basis for pasta, pizza and bread, should be surrendering to gluten-free products with such enthusiasm. You don’t have to be a culinary expert to realize that gluten is also related to obtaining a certain texture and consistency for flour-based recipes. Its absence, therefore, can mean a significant alteration to these recipes and, consequently, make it impossible to make, even if idealized, the “vera pizza” or the “vera pasta”.

The increase in the consumption of gluten-free products in Italy also allows us to observe that even food cultures that, at first glance, seem to be quite refractory, change not only due to environmental, economic or social pressures, but also cultural ones. But beware! If incorporating gluten-free pasta into a recipe in Italy has been tolerated, the same cannot be said for trying to change certain combinations of pasta and sauce…

Até mesmo a terra da pasta e da pizza se rende aos produtos sem glúten

Na Itália, a exemplo do que vem ocorrendo em muitos países, cresce o consumo de alimentos sem glúten. Pizzarias, comércios especializados, padarias, supermercados e até mesmo farmácias, de norte ao sul do país, oferecem opções cada vez diversificadas desses produtos.

De acordo com dados da Associação Italiana de Celíacos, há pouco mais de 241.000 pessoas com doença celíaca no país. Entretanto, estima-se que a doença afeta 1% da população na Itália, assim como em todo o mundo. Existiriam, portanto, aproximadamente 400 mil casos ainda não diagnosticados.

O total de 1% da população da população com a doença celíaca não chega a justificar o aumento de cerca de 30% ao ano no consumo de produtos sem glúten no país. A ampla difusão de uma cultura voltada à manutenção de estilos de vida mais saudáveis, em que muitos alimentos, a exemplo dos que possuem glúten, têm sido cada vez mais demonizados até mesmo para quem não apresenta doença celíaca ou qualquer intolerância a essa proteína, talvez explique a popularidade crescente desses produtos na terra da pasta e da pizza.

Parece estranho que um país tão arraigado à sua culinária e a certos ingredientes, sobretudo aqueles relacionados àprodução de seus principais itens culinários, como é o caso da farinha de trigo, base para massas, pizzas e pães, venha se rendendo com tanto afinco aos produtos sem glúten. Não é necessário ser um expert em culinária para perceber que o glúten está também relacionado à obtenção de uma determinada textura e consistência para receitas à base de farinha. Sua ausência, portanto, pode significar uma alteração significativa dessas receitas e, consequentemente, impossibilitar a confecção, ainda que idealizada, da “vera pizza” ou da “vera pasta”. 

O aumento do consumo de produtos sem glúten na Itália também nos permite observar que até mesmo culturas alimentares que, à primeira vista, parecem ser bastante refratárias, se modificam não apenas em razão de pressões ambientais, econômicas ou sociais, mas também culturais. Mas cuidado! Se incorporar uma pasta sem glúten em uma receita na Itália tem sido algo tolerado, o mesmo não se pode dizer ao se tentar alterar determinadas combinações de pasta e de molho…