Comida · Food

A gastronomic menu on the heights

Food in toothpaste-like tubes, canned preparations, bags filled with a freeze-dried preparation. These are the main images of space food that we have seen since the first manned flight and the most recent voyages into space.

After they were disseminated, these images left the impression that space food was a kind of ration, a minimalist portion much more focused on nourishing and sustaining the body than on actually feeding cultural aspects related to food. While these images are still prevalent, it seems that this idea of space food has been changing for some time.

In this March, it was announced that a space travel company will be partnering with renowned Danish chef Rasmus Munk of Copenhagen’s Michelin-starred Alchemist restaurant to offer a gastronomic voyage into the stratosphere. The trip will take place in a space balloon at 30,000 meters above sea level for six hours. The idea is to watch the sunrise over the curvature of the earth and taste a special menu created by this chef for the “modest” price of $500,000 per person. Literally, a sky high price!

There will only be six passengers per trip. Not bad to have a panoramic view like this while eating a meal prepared by a chef with two Michelin stars. A privilege for the few. An extravagance that seemed reserved for a much more distant future.

Were it not for the fact that we live in such a troubled world, with so many pressing demands to invest in, it wouldn’t make much sense to see people spending mega fortunes on such fleeting moments of luxury. The total value of each of these trips would solve some hunger problems for many people. But the cause is noble. The money raised from the trips will be invested in gender equality in science and technology. A good cause!

Um menu gastronômico nas alturas

Comidas em tubos semelhantes aos de pasta de dente, preparações em lata,  saquinhos recheados de um preparo liofilizado. Essas são as principais imagens de comida espacial que conhecemos desde o primeiro vôo tripulado até as viagens mais recentes ao espaço. 

Depois que foram disseminadas, essas imagens deixaram a impressão de que a comida espacial é uma espécie de ração, uma porção minimalista muito mais voltada para nutrir e sustentar o corpo do que propriamente alimentar aspectos culturais relacionados à comida. Embora essas imagens ainda prevaleçam, parece que essa ideia de comida espacial já vem sendo transformada há algum tempo. 

Neste mês de março, foi divulgado que uma empresa de viagens espaciais, em parceria com o renomado chef dinamarquês Rasmus Munk, do restaurante estrelado Alchemist, em Copenhague, vai proporcionar uma viagem gastronômica na estratosfera. A viagem será em um balão espacial a 30.000 metros acima do nível do mar com duração de seis horas. A ideia é observar o nascer do sol sobre a curvatura da terra, degustando um menu especial criado por esse chef e pelo preço módico de U$ 500 mil por pessoa. Literalmente um valor nas alturas!!! 

São apenas seis passageiros por viagem. Nada mal ter à frente um panorama desses enquanto se faz uma refeição de um chef com duas estrelas Michelin. Um privilégio para pouquíssimos. Uma extravagância que parecia reservada a um futuro bem mais distante. 

Não fosse vivermos em um mundo tão problemático, com tantas demandas urgentes para se investir, ver pessoas gastarem mega fortunas em momentos de luxúria tão efêmeros parece algo que não faz muito sentido. O valor total de cada uma dessas viagem resolveria alguns problemas relacionados a fome para muitas pessoas. No entanto, a causa não deixa de ser nobre. O valor arrecadado com as viagens deve ser investido na equidade de gênero na ciência e na tecnologia. Uma boa causa!

Comida · Food

Where is the cocoa?

Photography by Carla Rocha

On the eve of Easter, as every year, it’s impossible not to notice the flood of chocolate offers everywhere. Both in the media and in the various shops and supermarkets, the colorful packaging of chocolate eggs is highlighted weeks before the date. Every year, however, this celebration tastes saltier.

In recent years, the price of Easter eggs in Brazil has become exorbitant. At the same time, chocolate bars have become more expensive and fewer in volume. And the changes don’t stop there.

More than once, I’ve seen posts on social media from people asking if others have noticed a change in the taste of many of the chocolates sold in Brazil. You don’t have to be a chocolate expert to realize that the vast majority of these products contain less and less cocoa, in addition to more sugar and hydrogenated fats.

The announced progressive shortage of cocoa is likely to lead to even more significant changes in the products derived from this fruit and their costs. An example of this is the recent increase in cocoa prices due to climatic problems and pests affecting cocoa trees in the world’s major producing countries, such as Côte d’Ivoire and Ghana.

Although Brazil was once one of the world’s largest cocoa producers, the country’s supply does not meet demand. In contrast to the chocolates of the big brands, you’ll find here and there chocolates produced in Brazil, which are usually special and more expensive than the popular offers.

I think it’s fair to pay more for chocolate from small producers. They don’t have the same tax incentives and advantages as the big transnational companies, and they don’t collude with child and slave labor, as has been denounced in cocoa production in African countries and Brazil.

It has already been announced that cocoa-based chocolate will become a rare delicacy due to the climate crisis. So it seems that the vast majority of us, if we want to remember the pleasure of tasting chocolate, will have to settle for its aroma alone or resort to products with artificial cocoa flavoring, similar to so many other food simulacra in their ultra-processed version.

Por onde anda o cacau?

Às vésperas da Páscoa, como acontece todos os anos, é impossível não perceber a inundação de ofertas de chocolate em todos os lugares. Tanto nas mídias quanto nas diversas lojas e supermercados, o colorido das embalagens dos ovos de chocolate já ganha destaque semanas antes da data. No entanto, a cada ano, essa celebração tem um gosto mais salgado.

Nos últimos anos, o preço dos ovos de Páscoa tem se tornado exorbitante no Brasil. Ao mesmo tempo, as barras de chocolate, além de mais caras, vêm diminuindo em volume. E as mudanças não param por aí.

Mais de uma vez me deparei com publicações nas redes sociais de pessoas questionando se outras também têm notado a alteração do sabor de muitos chocolates vendidos no Brasil. Não é preciso ser um especialista em chocolate para perceber que a grande maioria desses produtos, além de possuírem mais açúcar e gordura hidrogenada, contém cada vez menos cacau.

A anunciada escassez progressiva do cacau provavelmente resultará em alterações ainda mais marcantes nos produtos derivados desse fruto e em seu custo. Um exemplo disso é a recente alta nos preços do cacau, causada por problemas climáticos e pragas nos cacaueiros dos principais países produtores mundiais, como Costa do Marfim e Gana.

Apesar de o Brasil já ter sido um dos maiores produtores mundiais de cacau, hoje sua oferta não atende à demanda do país. Em contraste com os chocolates das grandes marcas, encontramos aqui e ali chocolates produzidos no Brasil, geralmente especiais e com preço mais elevado que as ofertas populares.

Considero justo pagar mais por um chocolate resultante do trabalho de pequenos produtores. Eles não têm os mesmos incentivos fiscais e vantagens das grandes empresas transnacionais e não são coniventes com o trabalho infantil e escravo, como tem sido denunciado na produção de cacau em países africanos e no Brasil.

Já foi anunciado que, devido à crise climática, o chocolate à base de cacau se tornará uma iguaria rara. Assim, parece que a grande maioria de nós, se quiser rememorar o prazer de saborear um chocolate, terá que se contentar somente com o seu aroma ou então recorrer a produtos com sabor artificial de cacau, semelhantes a tantos outros simulacros de alimentos em sua versão ultraprocessada.

Comida · Food

Will we really stop cooking soon?

Photography by Carla Rocha

A lot has changed about food in the last few decades. It’s true that the younger generations in particular cook much less than their predecessors. Eating most meals outside the home has become the norm for those who work outside the home. In addition, with the proliferation of delivery services, ordering food to go has become commonplace, especially in large cities and for those who can afford it. But are we heading towards a time when we will no longer cook?

In a recent article in Folha de São Paulo newspaper, the CEO and owner of iFood, the largest delivery platform in Latin America, said he believes that in five to ten years, when ordering delivery of quality, healthy food becomes as cheap as buying ingredients at the market and preparing it at home, people will stop cooking.

For the mega-entrepreneur, cooking will become a thing of the past, just as we no longer make clothes or educate our children at home. A comparison that doesn’t seem to make much sense.

Despite all the promises of the industrialization of food, we use utensils that make it easier to prepare a dish, and we use a lot of pre-prepared ingredients, but we never stop cooking altogether. The prediction that microwaves would be the great revolution in our homes, where all we had to do was buy ready meals and heat them up for a few minutes or seconds, wasn’t quite true either. It may have made life easier in the kitchen, it may even have become the ubiquitous solution for some, but that doesn’t mean we’ve stopped cooking.

The motivations that lead someone to eat most of their meals out or order takeout on a regular basis are varied. They usually have to do with a lack of time, a lack of cooking skills, little incentive to cook, or even a lack of a kitchen. On the other hand, in Brazil, the largest country in South America, cooking at home is more economical, especially for those with less purchasing power. But it’s not only a financial question.

We don’t completely outsource the act of cooking either, because it can be a pleasure. For many of us, choosing the ingredients, buying them, creating or following a prepared recipe to the letter is undoubtedly a hedonistic practice. For some, it’s even considered therapy, an exercise to relieve stress from our increasingly demanding daily lives.

Será que em breve realmente deixaremos de cozinhar?

Nas últimas décadas, muitas coisas vêm mudando na alimentação. É certo que, principalmente as novas gerações, cozinham muito menos do que as anteriores. Hoje, fazer a maior parte das refeições fora de casa já virou a regra para quem trabalha fora. Além disso, pedir tele-entrega de comida é algo também bastante comum com a disseminação desse serviço, sobretudo nas grandes cidades e para quem pode incluir essa opção em seu orçamento. Mas será que estamos nos encaminhando para uma época em que já não cozinharemos mais?

Em matéria recente no jornal Folha de São Paulo, o CEO e proprietário do iFood, a maior plataforma de entregas da América Latina, afirmou acreditar que entre cinco e dez anos, quando pedir comida de qualidade e saudável feita na rua se tornar tão barato quanto comprar ingredientes no mercado e prepará-la em casa, as pessoas deixarão de cozinhar.

Para o megaempresário, assim como não se confecciona mais roupas ou se educa as crianças em casa, cozinhar se transformará em coisa do passado. Uma comparação que não parece fazer muito sentido. 

Apesar de todas as promessas da industrialização alimentar, utilizamos utensílios que facilitam o preparo de um prato e também muitos ingredientes pré-prontos, mas nunca deixamos de cozinhar totalmente. O prognóstico de que o micro ondas seria a grande revolução nos lares, bastando comprar comida pronta e esquentá-la por poucos minutos ou segundos também não foi muito preciso. O aparelho facilitou a vida na cozinha, pode até ter se tornado a solução onipresente para alguns, mas nem por isso deixamos de cozinhar.

As motivações que levam alguém a fazer a maior parte das refeições fora de casa ou pedir comida regularmente são diversas. Geralmente, têm relação com falta de tempo, ausência de habilidade culinária, pouco estímulo para cozinhar ou até mesmo a inexistência de uma cozinha. Por outro lado, tomando como parâmetro o Brasil, o maior país sul-americano, cozinhar em casa é acima de tudo mais econômico, em particular, para as camadas com menor poder aquisitivo. Mas não é apenas uma questão financeira. 

Não terceirizamos completamente o ato de cozinhar também porque é algo que pode ser prazeroso. Para muitos de nós, escolher os ingredientes, comprá-los, criar ou seguir à risca uma receita pronta é, sem dúvidas, uma prática hedonista. Para alguns, é considerada até mesmo uma terapia, um exercício para desestressar de nossos cotidianos cada vez mais exigentes.

Nem é necessário que seja um prato muito elaborado. Muitas vezes, é através do preparo daquela receita absolutamente simples, já gravada em nossos gestos de tão repetida, que sentimos um aconchego interno bem antes da primeira garfada. É como a sensação de vestir um calçado confortável depois de horas de caminhada ou como voltar para um lugar conhecido em que não há nada a se temer.  

Food

Homemade Food

Photography by Carla Rocha – The homemade food prepared by my sister

Yesterday, my sister cooked for me. I hadn’t eaten anything prepared by her for months, as we don’t meet very often since she lives in another state. But it’s great to have the opportunity to try her food because she’s always enthusiastic about cooking and this enthusiasm is reflected in all the dishes she prepares, it’s like an extra spice. But that’s not all.

Eating the food prepared by my sister reminded me that the idea of home cooking is becoming increasingly important. In our busy daily lives, where we rush around, overloaded and unable to meet all the commitments we have set ourselves, someone stopping their activities, “suspending time”, and dedicating themselves to cooking for one or other people has become an enormous privilege, especially for those who enjoy this food.

For many of us, cooking at home has become synonymous with unnecessary or unfeasible work, which mainly involves “wasting time”. And this is legitimate when we live in a system where our daily activities are regulated by the maxim that “time is money”. What’s more, there are people who can’t cook or who cook begrudgingly because they’re not interested in the subject of cooking, and that’s not necessarily a problem either. In many situations, when we receive someone to eat at our home, it is undoubtedly much easier to order a pizza or some other of the countless culinary offerings available today.

In Brazil, for example, many restaurants have tried to convince us that they prepare homemade food, as if this type of food could be summed up in certain ingredients and a method of preparation. The taste of home-cooked food in a restaurant is always going to be what we see on the labels of many processed products: “with imitation flavor”. In other words, some restaurants reproduce a flavor similar to home-cooked food, but it’s unlikely to be the same, and that’s because home is not necessarily the place, but the people, the bonds between them, the memory, the stories that happen around the stove.

That’s also why food from home will never be judged for improvisation or imprecision in its preparation. When the pasta is a little overcooked, the sauce a little thinner or the meat a little dry, we don’t go online to give it more or less stars. Homemade food is always forgiven.

Comida de Casa

Ontem, minha irmã cozinhou para mim. Havia meses eu não comia algo preparado por ela, pois não nos encontramos com muita frequência, já que ela vive em outro estado. Mas é muito bom ter a oportunidade de provar sua comida porque ela é sempre entusiasmada para cozinhar e esse entusiasmo se reflete em todos os pratos que ela prepara, é como se fosse um tempero extra. Mas não é somente isso.  

Comer a comida preparada pela minha irmã me fez lembrar que a ideia de comida de casa vem adquirindo um significado cada vez mais importante. Em nossos cotidianos atribulados, em que corremos de um lado para o outro, sobrecarregados, sem conseguir dar conta de todos os compromissos que nos tínhamos proposto, alguém parar suas atividades, “suspender o tempo”, e se dedicar a cozinhar para uma ou outras pessoas se tornou um enorme privilégio, especialmente para quem desfruta dessa comida. 

Para muitos de nós, cozinhar em casa virou sinônimo de trabalho desnecessário ou inviável, que envolve sobretudo “perda de tempo”. E isso é algo legítimo quando vivemos em um sistema em que nossas atividades diárias são reguladas pela máxima de que “tempo é dinheiro”. Além do mais, existem pessoas que não sabem cozinhar ou que cozinham a contragosto porque não se interessam pelo tema da cozinha, e isso também não é necessariamente um problema. Em muitas situações, ao receber alguém para comer em nossa casa, é sem dúvidas muito mais fácil pedir uma pizza ou alguma outra das inúmeras ofertas culinárias hoje disponíveis através de aplicativos. 

No Brasil, por exemplo, muitos restaurantes têm tentado nos convencer que preparam uma comida caseira, como se essa modalidade de comida se resumisse a certos ingredientes e um modo de preparo. O sabor da comida caseira em um restaurante sempre vai ser aquele que identificamos em rótulos de muitos produtos processados: “com sabor imitação de”, ou seja, alguns restaurantes reproduzem um sabor semelhante ao da comida de casa, mas dificilmente será a mesma coisa, e isso porque a casa não é necessariamente o lugar, e sim as pessoas, os laços entre elas, a memória, as histórias que acontecem em torno do fogão. 

E também por isso, comida de casa é a que jamais será julgada pelo improviso ou imprecisão no seu preparo. Quando o macarrão passa um pouquinho do ponto, o molho fica mais fino ou a carne um pouco ressecada não vamos para a internet fazer qualquer avaliação com mais ou menos estrelas. À comida de casa sempre se concede perdão.

Comida · Food

Eating through the eyes

Photography by Carla Rocha

Perhaps for some of the younger generation, who were born in the age of the smartphone, the world of food, or rather a certain world found on the internet, works like the legend of the mermaid, who attracts sailors with her song and they end up drowning. In the case of the internet, many end up getting lost in an idealized sea of gluttonous pleasures.

Images of hotly contested restaurants, lavish and exuberant dishes, crazy recipes with an abundance of ingredients, all help to create this world. There’s always that little hidden restaurant to be discovered, a new patisserie that promises to be the best, the most spectacular Japanese multi-course meal and so on. It’s as if these images were also saying: only those who don’t want to eat don’t eat.

It’s well known that advertising is the lifeblood of the business, especially in an environment where exaggerations can earn thousands of likes and put a lot of money in your pocket. The important thing is to sell, and at any cost. Some food influencers literally sell their liver, producing videos in which they appear systematically consuming huge portions of fried food and other saturated fats. Some of the more lucid comments on such posts are almost a bet that frequent consumption of these calorie bombs the things will “go bad” one day.

While public health data from various countries has revealed the high rates of diseases associated with poor diet, these videos act as a disservice to healthier eating.

But these images only multiply because they gain thousands of views. And this leads us to reflect on how images of food, people eating or even preparing recipes mobilize so many people. Watching a New York holl open in the middle with a pistachio cream sliding down it in abundance, watching someone devouring a pizza with a generous topping or a sandwich with a filling that could satisfy three people at once, can awaken the most recondite desires for some food transgression. That’s why the term food porn makes so much sense in contemporary visual culture.

Some go to extremes. In Asian countries, the phenomenon of mukbang, where people post videos of themselves eating excessively until they can’t stand it, has become a fever on the internet. In China, the phenomenon has become so widespread that, in a campaign against food waste, the government has started to block these videos.

Just as these images provoke us to think that many food influencers have lost their minds, even risking their health, others have crossed the line between ethics and no-good person. Recently, a famous Italian digital influencer was ordered to pay a million-dollar fine after being accused of misleading consumers by promoting a Christmas candy (pandoro) developed under her brand in partnership with an Italian candy manufacturer. The price of the product, which was much higher than the market price, was justified by the fact that it involved a donation to a children’s hospital for the treatment of bone cancer, as suggested in the product’s advertising. In practice, she was the one pocketing the money.

Some say that the experience of eating begins with the eyes. This is not untrue, as the world of food images, especially today, increasingly transcends the simple awakening of our taste buds.

O comer pelos olhos

Talvez para algumas novas gerações, que já nasceram na era do smartphone, o mundo da comida, ou melhor, um certo mundo encontrado na internet, funcione como a lenda das sereias que atrai marinheiros com seu canto e esses terminam se afogando. No caso da internet, muitos acabam se perdendo num mar idealizado dos prazeres da gula. 

Imagens de restaurantes disputados, de pratos fartos e exuberantes, de receitas mirabolantes com trocentos ingredientes em abundância, tudo isso ajuda a criar esse mundo. Sempre existe aquele pequeno restaurante mais escondido a ser descoberto, uma nova confeitaria que promete ser a melhor, o rodízio de comida japonesa mais espetacular e por aí vai. É como se essas imagens também dissessem: só não come quem não quer.  

Já se sabe que a propaganda é a alma do negócio, especialmente num meio em que os exageros podem render milhares de likes e isso significar umas boas cifras no bolso. O importante é vender e a qualquer custo. Alguns influencers de comida literalmente vendem o fígado, produzindo vídeos em que aparecem sistematicamente consumindo enormes porções de frituras e outras gorduras saturadas. Alguns comentários mais lúcidos em postagens dessa natureza quase fazem uma aposta de que consumir com frequência aquelas bombas calóricas uma hora “vai dar ruim”.

Enquanto os dados de saúde pública de diversos países vêm revelando os altos índices de doenças associadas a má alimentação, esses vídeos funcionam como um desserviço a uma alimentação mais saudável. 

Mas essas imagens só se multiplicam porque ganham milhares de visualizações. E isso nos leva a refletir sobre como imagens de comida, de pessoas comendo ou ainda preparando receitas mobilizam tanta gente. Assistir a um New York holl sendo aberto ao meio com um creme de pistache a deslizar abundantemente, assistir alguém devorando uma pizza com uma cobertura generosa ou um sanduíche com um recheio que daria para satisfazer três pessoas ao mesmo tempo, pode despertar os desejos mais recônditos de alguma transgressão alimentar. Por isso, faz tanto sentido o termo food porn na cultura visual contemporânea. 

Alguns vão ao extremo. Em países asiáticos, o fenômeno do mukbang, de pessoas que postam vídeos comendo exageradamente até não suportarem mais, virou febre na internet. Na China, o fenômeno ganhou tamanha proporção que, em uma campanha contra o desperdício alimentar, o governo passou a bloquear esses vídeos. 

Assim como essas imagens nos provocam a pensar que muitos influencers de comida perderam a razão, arriscando ate mesma a saúde, outros ultrapassaram a fronteira que separa o ético do mau-caratismo. Recentemente, uma famosa influencer digital italiana foi condenada a pagar uma multa milionária, ao ser acusada de enganar consumidores, depois de promover um doce natalino (pandoro), desenvolvido com sua marca em parceria com uma fabricante de doces italiana. O preço do produto, bem superior ao do mercado, se justificaria por envolver uma doação a um hospital pediátrico para tratamento de câncer ósseo, conforme sugeria a sua publicidade do produto. Na prática, quem embolsava o dinheiro era ela. 

Há quem diga que a experiência de comer inicia pelos olhos. Não chega a ser uma inverdade, na medida em que o mundo das imagens de comida, especialmente hoje, cada vez mais transcende o simples despertar de nossas papilas gustativas.

Comida · Food

Urban Agriculture versus food deserts

I always leave multiple tabs open on my computer screen. A bad habit. I promise myself that I will organize these tabs so that I can read all of them, but as the days go by, instead of closing them, I end up opening so many more. It’s not uncommon for me to remember a piece of information that caused me to leave one of the tabs open, and when I go to look for it, I find another text that catches my eye, and I end up reading it and forgetting what I was looking for. This is one of my daily technology-driven sagas.

Today was no different. I was looking for some information in one of the open tabs and came across an article on a magazine page about Ron Finley’s work. A few years ago, I had watched a TED talk in which he advocated urban agriculture as a solution to food deserts in the United States, places where access to fresh or minimally processed food is scarce or impossible, forcing people to travel to other regions to find these items. Finley also uses the term “food apartheid” as a synonym for food deserts in the United States, as this reality is related to gender, race, and class segregation in addition to high levels of poverty.

The article focuses on the positive impact of Finley’s TED talk, which not only changed his life trajectory, but also helped expand his philanthropic work with urban agriculture.

  Photography by Carla Rocha – Horta do Pacuca – vegetal and community garden – Florianópolis/Brazil

As I read the article, I kept thinking about something that seems absolutely obvious: how vast the world of food is, how many factors and issues it involves. But it seems that because we’re bombarded daily with so many images of food, and almost always reproducing so much abundance, even if it’s not always healthy food, it’s easy to ignore other realities related to food.

The food deserts in Los Angeles that prompted Finley’s initiative are not unique to this region of the United States, and certainly not to this country. Food deserts exist all over the world, and in many places they have been exacerbated by the pandemic. In all likelihood, as climate change continues, these deserts will become much more common than imagined, even in previously unlikely areas.

For this reason, urban agriculture is not just an interesting topic, but an increasingly important and necessary phenomenon. People who don’t have easy access to fresh, healthy food have poor and problematic diets. Urban agriculture is therefore directly related to food sovereignty and food and nutrition security.

For Finley, growing your own food is like printing your own money. But planting and harvesting in cities involves many other factors, as Finley’s work and that of many others around the world shows. Countering the industrial movement that increasingly dominates food landscapes, urban agriculture is transforming cities into much healthier places.

Agricultura urbana versus desertos alimentares

Sempre deixo várias abas abertas na tela de meu computador. Um péssimo costume. Prometo a mim mesma organizar essas abas com a devida leitura de todos os textos, mas os dias passam e, ao invés de fechá-las, acabo abrindo outras tantas. Não é raro que eu lembre de alguma informação que me levou a deixar uma das abas abertas e, ao buscá-la, encontro algum outro texto que me chama a atenção, acabo lendo e esqueço o que buscava. Essa é uma de minhas sagas diárias proporcionadas pela tecnologia. 

Hoje não foi diferente. Buscava alguma informação em uma das abas abertas e encontrei uma matéria na página de uma revista sobre o trabalho de Ron Finley. Há alguns anos já havia assistido uma palestra no TED em que ele já defendia a agricultura urbana como uma solução para os desertos alimentares nos Estados Unidos, locais em que o acesso a alimentos in natura ou minimamente processados é escasso ou inviável, obrigando as pessoas a se dirigirem a outras regiões para encontrar esses itens. Finley também usa a expressão apartheid alimentar como sinônimo de desertos alimentares nos Estados Unidos, já que essa realidade, além de altos índices de pobreza, também se relaciona à segregação de gênero, raça e classe. 

Na matéria, o foco é o impacto positivo da palestra de Finley no TED, que não apenas mudou a sua trajetória de vida, mas contribuiu para expandir seu trabalho filantrópico com agricultura urbana. 

Enquanto lia a matéria, eu não deixava de pensar em algo que parece absolutamente óbvio, isto é, no quanto o universo da comida é vasto, envolve tantos fatores e problemáticas. No entanto, parece que à medida em que somos bombardeados diariamente com tantas imagens de comida e quase sempre reproduzindo tanta fartura, ainda que nem sempre signifiquem comidas saudáveis, é fácil ignorar outras realidades ligadas à alimentação. 

Os desertos alimentares de Los Angeles, e que motivaram a iniciativa de Finley, não são uma exclusividade dessa região dos Estados Unidos e muito menos desse país. Desertos alimentares existem ao redor do mundo e, em muitos lugares, houve ainda um agravamento com a pandemia. Muito provavelmente, com o avanço das mudanças climáticas, esses desertos se tornem bem mais comuns do que se imagina também em territórios anteriormente improváveis. 

Por essa razão, a agricultura urbana não é apenas um tema interessante, mas é um fenômeno cada vez mais importante e necessário. Pessoas que não têm acesso fácil a alimentos frescos e saudáveis possuem uma dieta pobre e problemática. Portanto, agricultura urbana tem relação direta com soberania alimentar e segurança alimentar e nutricional. 

Para Finley, cultivar os próprios alimentos é como imprimir o próprio dinheiro. Mas plantar e colher nas cidades envolve muitos outros fatores, como mostra o trabalho de Finley e de diversos outros ao redor do mundo. Na contramão do movimento da indústria, que domina cada vez as paisagens alimentares, a agricultura urbana vêm transformando cidades em espaços muito mais saudáveis. 

Comida · Food

Why so much junk food is consumed?

Photography by Carla Rocha – Supermarket in Brazil

A recent publication in the Lancet, reporting that Colombia has become one of the first countries in the Americas to tax junk food, is a provocation to think about how far we have come in human nutrition. Why has junk food consumption become so ubiquitous around the world?

The term junk food was first used in 1972 by Michael Jacobson, an American scientist, to refer to products high in calories and low in nutritional value. The term has become synonymous with ultra-processed foods, substances that look like food but are actually a combination of chemical additives, salt or sugar, and saturated fat.

Taxing these products shouldn’t even be a surprise; on the contrary, it should be normalized as a rule, since the damage to the population’s health associated with increased consumption of these products is growing. Hypertension, diabetes, obesity, cancer and other chronic diseases have been linked to the consumption of ultra-processed foods.

According to the Lancet article, 56.4% of Colombia’s population is overweight, nearly a third of adults have high blood pressure, and about a quarter of annual deaths are related to cardiovascular disease. These numbers are not isolated. In the case of Brazil, a study conducted by the Brazilian Eating Habits Observatory concluded that ultra-processed foods are responsible for about 57,000 premature deaths per year in the country.

The effective lobbying of the ultra-processed food industry and the many subsidies for these products cannot be ignored. In Brazil, the systematic increase in the price of staple foods for the vast majority of the population, such as beans and rice, as well as fruits and vegetables, also makes it impossible to systematically consume healthier foods. And this price increase is precisely linked to the lack of subsidies for small producers who are responsible for producing fresh or minimally processed food in the country.

In addition to the entire media universe, which is not limited to promoting the golden arches of fast food, other mechanisms are at work to encourage the consumption of ultra-processed foods. In most supermarkets in Brazil, while these products are on the main shelves at the entrance of the supermarket, vegetables, fruits and legumes are usually in the back. You have to walk all the way through the store to find fresh food. This layout explains a lot. What the eye can’t see….

I come from a generation in which the idea of real food was a simple aphorism used to distinguish it from toy food, usually made with plasticine. We didn’t even discuss the harms of ultra-processed food because it wasn’t as widely available or consumed as it is today. We can’t go back to the past, but without a broader change that includes educational, fiscal and regulatory policies, it’s hard to imagine a healthier future.

Por que se consome tanta junk food?

Uma publicação recente da revista Lancet noticiando que a Colômbia passou a ser um dos primeiros países nas Américas a taxar as junk food é uma provocação para pensarmos a que ponto chegamos na alimentação humana. Por que o consumo de de junk food se tornou tão onipresente ao redor do mundo?

O termo junk food teria sido utilizado pela primeira vez em 1972 por Michael Jacobson, cientista estadunidense, referindo-se a produtos ricos em calorias e de baixa qualidade nutritiva. O termo se tornou um sinônimo para os ultraprocessados, ou seja, substâncias que se assemelham à comida, mas que na realidade são, em sua grande maioria, uma combinação de aditivos químicos, sal ou açúcar e gordura saturada.

A taxação desses produtos nem deveria causar surpresa; ao contrário, deveria ser normalizada como regra, na medida em que crescem os danos à saúde da população associados ao aumento do consumo desses produtos. Hipertensão, diabetes, obesidade, câncer e outras doenças crônicas têm sido atribuídas ao consumo dos ultraprocessados. 

De acordo com o artigo da Lancet, 56,4% da população da Colômbia está acima do peso, quase um terço dos adultos tem pressão alta e cerca de um quarto das mortes anuais estão associadas a doenças cardiovasculares. Esses dados não são isolados. No caso do Brasil, uma pesquisa realizada pelo Observatório Brasileiro dos Hábitos Alimentares concluiu que os alimentos ultraprocessados são responsáveis por cerca de 57 mil mortes prematuras por ano no país.

Não é difícil entender o porquê do aumento do consumo de ultraprocessados e as razões são várias. O baixo custo desses produtos os torna mais acessíveis do que muitos alimentos in natura. A sua maior durabilidade e a praticidade no seu preparo são fatores que também contribuem para tornarem esses produtos a principal opção.

Não se pode ainda ignorar o lobby eficaz da indústria dos ultraprocessados e os muitos subsídios a esses produtos. No Brasil, o aumento sistemático do preço de alimentos básicos para uma grande maioria da população, como o feijão e o arroz, e dos hortifrutigranjeiros também inviabilizam o consumo sistemático de alimentos mais saudáveis. E esse aumento de preços está justamente ligado à falta de subsídios a pequenos produtores, os responsáveis pela produção dos alimentos frescos ou minimamente processados no país. 

Além de todo o universo midiático, que não se restringe à promoção dos arcos dourados fastfoodianos, outros mecanismos atuam para o estímulo ao consumo de consumo de ultraprocessados. No Brasil, na maior parte dos supermercados, enquanto esses produtos estão nas principais gôndolas desde a entrada dos supermercados, as verduras, frutas e legumes, geralmente, estão na sua parte do fundo. Deve-se cruzar todo o estabelecimento para encontrar os alimentos in natura. Essa configuração espacial já explica muita coisa. O que os olhos não vêem….

Sou de uma geração em que a ideia de comida de verdade era um simples aforismo usado como distinção da comida de brinquedo, geralmente preparada com massa de modelar. Nem se discutia os malefícios dos ultraprocessados porque não havia tanta disponibilidade ou consumo desses produtos como hoje. Não podemos voltar ao passado, mas sem uma mudança de ordem mais ampla, envolvendo políticas educativas, fiscais e regulatórias, fica difícil pensar em um futuro mais saudável. 

Comida · Food

What will we eat tomorrow?

Photography by Carla Rocha – Blackberries

One of the topics that has captured my interest, especially in the last year, is the future of food. My interest is mainly justified by the scenario that is emerging, in which the advance of the climate crisis and its direct or indirect consequences on food in a broader sense are remarkable.

I confess that it’s an interest mixed with a certain concern. Some of the most severe weather events in the world have damaged various crops. This means not only shortages, but also an increase in the price of many foods. In countries where access to food is already difficult, the situation is likely to worsen. In countries with greater food diversity, however, it will most likely mean that a quality diet, especially one based on a variety of fresh foods, grains and cereals, will be increasingly limited to a very small portion of the population. The vast majority will increasingly rely on ultra-processed products.

One issue that has been raised about the future of food is the projected growth of the world’s population, which is estimated to reach 9 billion by the year 2050. As food-related problems are exacerbated by the climate crisis, the question arises as to whether it will be possible to feed this entire population in the future.

The development of food production technologies based on population growth was the main argument behind the Green Revolution that began in the middle of the last century. We know that, especially since then, the increasing use of monocultures and the systematic use of synthetic fertilizers and pesticides have made agriculture one of the main causes of the environmental crisis we face today.
We know that the increasing use of monocultures and the systematic use of synthetic fertilizers and pesticides have made agriculture one of the main contributors to the environmental crisis we face today, not to mention the impact of these products on human health.

In the city where I live, Florianópolis, the world’s largest animal meat producer is building Brazil’s first laboratory meat research center. The multi-million dollar investment is scheduled to open in 2024. Very soon, we will see the results of this research in meatballs, hamburgers and sausages based on this type of meat, although, as in the United States, it will most likely be consumed by a minority due to its high cost.

While some people project the future of food from the laboratory and biotechnology, others, observing the extent to which our food has become impoverished and homogenized as biodiversity has diminished, advocate looking to the past. This is the perspective of Taras Grescoe, author of The Lost Supper, for whom the future of food lies in those foods that have been lost, forgotten, or almost disappeared. In the same vein, Dan Saladino, in his book Eating to Extinction, points to the danger of creating more uniform crops, since a global system based on a limited selection of plants and a few varieties runs a great risk of succumbing to disease, pests, and climatic extremes.

A great diversity of plants has accompanied most of human history. When it comes to lab-grown foods, we don’t have much idea of what they will be in the future. But if we take the example of what has happened with the spread of other ultra-processed foods, not only have they not solved world hunger, they have created a number of problems, especially with regard to human health.

Whether we look to the past or to the laboratory, the only certainty we have is that the future of food is becoming increasingly uncertain.

O que comeremos amanhã?

Um dos temas que tem me despertado muito interesse, especialmente nesse último ano, é o relacionado ao futuro da alimentação. Meu interesse se justifica principalmente por conta do cenário que vem se configurando, em que é notável o avanço da crise climática e suas consequências diretas ou indiretas na alimentação de uma maneira mais ampla. 

Confesso que é um interesse misturado com uma certa preocupação. Alguns eventos climáticos mais rigorosos ao redor do mundo vêm prejudicando cultivos diversos. Isso significa não apenas escassez, como também o aumento no preço de muitos alimentos. Em países que já enfrentam dificuldades no acesso alimentar a situação tende a se agravar. Já nos países que dispõem de uma maior diversidade alimentar, muito provavelmente, isso significa que uma alimentação de qualidade, isto é, especialmente aquela baseada em uma variedade de alimentos frescos, grãos e cereais, talvez fique progressivamente restrita a uma pequeníssima parcela da população. A grande maioria vai depender cada vez mais dos produtos ultraprocessados.  

Um ponto que tem sido levantado a respeito do futuro da alimentação é o da projeção de crescimento da população mundial, estimada para alcançar 9 bilhões até o ano de 2050. Na medida em que os problemas ligados ao campo alimentar em decorrência da crise climática tendem a se acirrar, a questão é se no futuro será possível alimentar toda essa população.

O desenvolvimento de tecnologias para a produção alimentar baseado no  crescimento da população foi o argumento principal da Revolução Verde, iniciada em meados do século passado. Sabemos que, especialmente a partir desse período, o implemento crescente de monoculturas, o uso sistemático de fertilizantes sintéticos e agrotóxicos transformou a agricultura em uma das principais responsáveis pela crise ambiental que enfrentamos hoje, sem contar os impactos do desses produtos na saúde humana. 

O mesmo argumento de crescimento da população tem sido repaginado e utilizado pela indústria de ultraprocessados, mais especificamente, a da carne cultivada em laboratório.  Essa carne, produzida a partir de células animais, tem sido vendida como uma alternativa para suprir a necessidade de proteínas no futuro, e é defendida como algo até mesmo mais sustentável do ponto de vista ambiental, considerando a redução das emissões de gases com efeito de estufa, já que são utilizadas menos terras em comparação com a pecuária.

Na cidade onde eu vivo, Florianópolis, a maior empresa global de produção de carne animal está implantando o primeiro centro de pesquisa para carne em laboratório do Brasil. O investimento milionário é previsto para ser inaugurado em 2024. Muito em breve, já veremos o resultado da pesquisa em almôndegas, hamburgueres e embutidos a base desse tipo carne, embora, a exemplo de ocorre nos Estados Unidos, muito provavelmente, considerando o seu alto custo, vai ser destinado ao consumo de uma minoria.

Enquanto alguns projetam o futuro da comida a partir de um laboratório e da biotecnologia, outros, ao observarem o quanto nossa alimentação foi empobrecendo e se homogeneizando com a diminuição da biodiversidade, defendem olharmos para o passado. Essa é perspectiva de Taras Grescoe, autor de The Lost Supper, para quem o futuro dos alimentos está naqueles alimentos perdidos, esquecidos ou quase desaparecidos. Na mesma vertente, Dan Saladino, em seu livro Eating to Extinction, chama a atenção para o perigo de se criar culturas mais uniformes, uma vez que um sistema global baseado em uma seleção restrita de plantas e de poucas variedades corre um risco grande de sucumbir a doenças, pragas e extremos climáticos.

Uma ampla diversidade de plantas acompanhou a maior parte da trajetória humana.  No que se refere aos alimentos produzidos em laboratório, não temos ainda tanta ideia do que representarão mais adiante. Mas se tomarmos o exemplo do que ocorreu com a disseminação de outros ultraprocessados, além de não resolverem a fome no mundo, criaram uma série de problemas, sobretudo no que se refere à saúde humana. 

Olhando para o passado ou para os laboratórios, a única certeza que temos é que o futuro da alimentação tem se tornado cada vez mais cheio de incertezas. 

Comida

Christmas food in Brazil isn’t necessarily turkey

Photography by Carla Rocha

For the first time, my Christmas dinner will be in a restaurant. That sounds a little strange to me. The idea of Christmas dinner has always reminded me of a family meal in a domestic setting. I remember the Christmas dinner we used to have at my family’s house when we could get almost the whole family together. The main dish was turkey with “giblet farofa” and dried fruit. There were other dishes, but the turkey was always the centerpiece.

I remember that Christmas dinner always took time to prepare. My mother would buy the ingredients days in advance. Some of the dishes started two days before Christmas dinner. I was usually in charge of getting the turkey ready for the table. First, I would cut the slices, place them on a large plate, and then arrange the “giblet farofa” around them. Finally, I would decorate the dish with pineapple, plums, and peaches in syrup, as well as dried fruit.

Christmas dinner was always plentiful because the next day we would meet again for lunch and the meal would include what was left over from the night before. The main escuse for our dinner and lunch the next day was to reunite the family that had already scattered to live in other cities.

After my mother passed away, our family grew and became even more scattered. We are no longer able to get together at Christmas like we used to and those hearty, home-cooked meals have become a reminder of a time that seems more and more distant.

Perhaps it’s because I keep these images in my mind that I confess I don’t have much of an attachment to Christmas celebrations anymore-quite the opposite, in fact. On more than one occasion, I’ve spent Christmas alone and without eating anything special due to circumstances. And on other Christmases, even when I’ve spent them with other people, the main course hasn’t always been turkey. I can even remember more recent Christmases when we had barbecue or a fish dish.

Of course, you can’t generalize about what people eat for Christmas, especially in Brazil, a country with so many contrasts and great social inequality. My family’s Christmas and the table of relatively rich and varied food reflected a middle-class celebration in the country.

It can be said that social, cultural and economic changes have been reshaping Christmas for many people. Smaller families, travel for tourism, lack of time and cooking skills, dietary restrictions are some of the reasons why many people no longer celebrate Christmas as they used to. Dinner in restaurants or those provided by specialized delivery services also seems to be a sign of the new times.

Of course, you can’t generalize about what people eat for Christmas, especially in Brazil, a country with so many contrasts and great social inequality. My family’s Christmas and the table of relatively rich and varied food reflected a middle-class celebration in the country.

It can be said that social, cultural, and economic changes have reshaped Christmas for many people. Smaller families, travel for tourism, lack of time and cooking skills, dietary restrictions are some of the reasons why many people no longer celebrate Christmas as they used to. Dinner in restaurants or by specialized delivery services also seems to be a sign of the new times.

The Christmas menu has been adapted to everyone’s reality. But if you think about it, it’s never made much sense to eat turkey on Christmas in Brazil, except for the fact that it’s considered a symbol of abundance… they say. It’s a North American custom that has arrived here. Making the Christmas menu more flexible could also mean having a meal that is more in line with Brazil’s food diversity.

Comida de natal no Brasil não é necessariamente peru

Pela primeira vez, minha ceia de natal será em um restaurante. Para mim, isso soa um pouco estranho. A ideia de uma ceia de natal sempre me remeteu a uma refeição em família e num ambiente doméstico. Guardo na memória a ceia que se fazia na casa de minha família, ocasião em que conseguíamos reunir quase toda a família. O prato principal era o peru com farofa de miúdos e frutas secas. Havia também outros pratos, mas o peru sempre foi o centro da ceia. 

Lembro que a ceia de natal era sempre algo muito trabalhoso de se preparar. Minha mãe comprava os ingredientes com dias de antecedência. Já o preparo de alguns pratos começava até mesmo dois dias antes do jantar de natal. Geralmente, eu ficava encarregada de finalizar o peru para ser levado à mesa. Primeiro, eu cortava as fatias, as colocava em um prato grande e, depois disso, dispunha no seu entorno a farofa de miúdos. Por último, além de frutas secas, decorava o prato com abacaxi, ameixas e pêssegos em calda. 

A ceia de natal era sempre farta até porque no dia seguinte nos reuníamos novamente para almoçar e a refeição incluía o que tinha restado da noite anterior. O pretexto maior de nossa ceia e do almoço no dia seguinte era reunir a família que já tinha se dispersado para viver em outras cidades. 

Depois do falecimento de minha mãe e, com o passar do tempo, nossa família cresceu e se tornou ainda mais dispersa. Já não conseguimos nos reunir no natal como antes e aquelas ceias fartas e preparadas em casa se tornaram a lembrança de uma época que parece cada vez mais distante.

Talvez por guardar na memória essas imagens, confesso que já não tenho mais muito apego às festividades de natal, muito pelo contrário. Em mais de uma oportunidade, e por força das circunstâncias, passei o natal sozinha e sem comer nada de especial. Além disso, em outros natais, mesmo passando acompanhada, nem sempre o prato principal foi o peru. Lembro inclusive de já ter comido churrasco ou alguma receita de peixe em natais mais recentes. 

É certo que não se pode generalizar o que se come hoje no natal, especialmente no Brasil, um país com tantos contrastes e uma grande desigualdade social. O natal de minha família e a mesa de comida relativamente farta e variada refletia a comemoração de uma classe média no país. 

Pode-se dizer que mudanças sociais, culturais e econômicas vêm reconfigurando o natal de muita gente. Famílias menores, deslocamento por turismo, falta de tempo e de habilidades culinárias, restrições alimentares são algumas das motivações para muitas pessoas não comemorem mais essa data como anteriormente. A ceia em restaurantes ou aquelas disponibilizadas por serviços especializados para tele-entrega também parecem ser um sinal dos novos tempos. 

O cardápio de natal vem sendo ajustado de acordo com a realidade de cada um. Mas, se pensarmos bem, nunca fez muito sentido comermos peru de natal no Brasil, a não ser pelo fato de ser considerado um símbolo de fartura… dizem. É um hábito norte americano que chegou por aqui. Flexibilizar o cardápio do natal talvez também signifique uma ceia mais condizente com a diversidade alimentar que marca o Brasil.

Comida · Food · Bebidas

The unglamorous side of food when it comes to the poison on our plate

Photography by Fernando Frazão/Agencia Brasil


In this month of November, in which we have witnessed so many simultaneous tragedies around the world related to the acceleration of the climate crisis and, in the same week that COP 28 begins, an event aimed at discussing and seeking agreements to try to contain the climate crisis, the Brazilian Federal Senate approved PL 1459/2022. Also known as the “poison bill”, it consists of a bill that makes the use of pesticides even more flexible in the country. It’s sad news, bordering on the absurd, considering that Brazil is already recognized as the biggest consumer of pesticides in the world.

This news exalts a very dark or unglamorous side of food. We are consuming more and more poison. Pesticides are present in food, drinks, tap water and the environment. It is well known that these products are harmful to the health of those who consume them, those who deal directly with them in agriculture and those who live in the vicinity where food is grown with these products. Not only that, but they also contribute greatly to environmental degradation.

One of the most critical points is that this bill favors the registration of agrochemicals that are still prohibited from being registered due to the risk of causing cancer, genetic mutations and the destruction of biodiversity. According to Fiocruz, a Brazilian institution dedicated to health science and technology, there is no acceptable level for the consumption of products that can cause cancer, i.e. even small doses of carcinogenic substances can cause irreversible damage to people’s health.

With specific regard to the two most widely used pesticides in the world, glyphosate and 2,4-D (2,4-dichlorophenoxyacetic acid), a study carried out in Ecuador since 2008 by researchers from the University of California, San Diego, concluded that adolescent exposure to these two pesticides can lead to neurobehavioral development disorders, affecting children’s cognitive and behavioral development and contributing to rising rates of anxiety, depression, excessive aggression and learning deficits.

The vast majority of pesticides used in Brazil come from European Union countries. The irony is that many of the pesticides that these countries export to Brazil are banned in their territories. Despite this, in the case of glyphosate, and even in the face of appeals from scientists and environmentalists, in the last week of November, the European Commission decided to renew the authorization for the use of this pesticide for another 10 years. Meanwhile, in the United States, lawsuits from farmers over the use of Roundup are on the rise.

The use of pesticides is a global problem that seems to be getting worse. These substances should not be on any menu. Unfortunately, we are increasingly forced to consume their bitter taste somehow, since we don’t have much choice.

O lado nada glamouroso da comida quando o assunto é o veneno no nosso prato

Neste mês de novembro, em que presenciamos tantas tragédias simultâneas ao redor do mundo relacionadas à aceleração da crise climática e, na mesma semana em que inicia a COP 28, evento voltado para discutir e buscar acordos para se tentar conter a crise climática, o Senado Federal brasileiro aprovou a PL 1459/2022. Conhecidotambém como a “PL do veneno”,consiste em umprojeto de lei que flexibiliza ainda mais a utilização de agrotóxicosno país. É uma noticia triste, que beira ao absurdo, considerando que o Brasil já é reconhecido como o maior consumidor de agrotóxicos do mundo.

Essa notícia exalta um lado muito sombrio ou nada glamouroso da comida. Estamos consumindo cada vez mais veneno. Os agrotóxicos estão presentes nos alimentos, nas bebidas, na água que corre das torneiras e também no ambiente.  É sabido que esses produtos são prejudiciais à saúde de quem os consome, de quem lida diretamente com esses produtos na agricultura e de quem vive nas proximidades onde são cultivados alimentos com esses produtos. Não bastando isso, ainda contribuem amplamente para a degradação ambiental.

Um dos pontos mais críticos é que esse projeto de lei favorece o registro de agrotóxicos que são ainda proibidos de ser registrados pelo risco de provocarem câncer, mutações genéticas e destruição da biodiversidade. Segundo a Fiocruz,instituição brasileira voltada à ciência e tecnologia em saúde, não há um nível aceitável para o consumo de produtos que podem causar câncer, isto é, até mesmo pequenas doses de substancias cancerígenas podem gerar danos irreversíveis à saúde das pessoas.

No que se refere especificamente aos dois agrotóxicos mais utilizados no mundo, o glifosato e o 2,4-D (ácido 2,4-diclorofenoxiacético), um estudo realizado no Equador desde 2008 por pesquisadores da Universidade da Califórnia, em San Diego, concluiu que a exposição de adolescentes a esses dois agrotóxicos pode levar a distúrbios do desenvolvimento neurocomportamental, afetando o desenvolvimento cognitivo e comportamental das crianças e contribuindo para os índices crescentes de ansiedade, depressão, agressividade excessiva e défices de aprendizagem.

A grande maioria dos agrotóxicos utilizados no Brasil provém de países da União Europeia. A ironia é que muitos dos agrotóxicos que esses países exportam para o Brasil são proibidos em seus territórios.  Apesar disso, no caso do glifosato, e mesmo diante do apelo de cientistas e ambientalistas, nesta última semana de novembro, a Comissão Europeia decidiu renovar a autorização para o uso desse agrotóxico por mais 10 anos. Enquanto isso, nos Estados Unidos, crescem ações judiciais de agricultores relacionadas ao uso do Roundup. 

A utilização de agrotóxicos é um problema mundial que parece se agravar. Essas substâncias não deveriam constar em nenhum cardápio. Infelizmente, somos cada vez mais obrigados a consumir seu sabor amargo de algum modo, já que temos não temos muitas escolhas. 

Comida · Food

Temporary #Rip to the fair and climate change

Photography by Carla Rocha – Agroecological fair in Florianópolis

I’ve spent the last three months away from Florianópolis. One of the things that makes me feel most at home is buying most of the items I need to cook at the agroecological fair that takes place once a week in a neighborhood not far from where I live. I arrived in the city on Tuesday and did a bit of food shopping, but I waited until Saturday, the day of the week when the fair takes place, to make a larger purchase, thinking about what I would use to cook for the next seven days or so.

It’s not that this is the only fair in the city, there are others that are much bigger and have more food on offer, but this is a fair not so far from my home, and one that I’m used to going to. It’s just one stall, run by a couple who come from São Bonifácio, a town near Florianópolis. I always exchange a few words with them, we have a few laughs, I feel very comfortable buying there and I’m happy to have this dialogue with those who produce what I eat, an opportunity that is increasingly rare in many urban contexts.

So, finally, on Saturday morning, I arrived at the fair site, but the space set aside for it was absolutely empty. I thought the couple might have had an unforeseen event that day, but that wasn’t the case. I went into a natural products store on the same corner as the fair and asked if anyone had any information about why the stall wasn’t there.

To my surprise, the answer I got was that the fair hadn’t been operating there for some time. The explanation was that, due to the heavy rains in Santa Catarina over the last two months, the stall owners had lost a lot of food. Because of this, they decided to first build a greenhouse to grow the food, to ensure that they wouldn’t have to make any more losses, and only after that would they resume working at the fair.

When I received the news that there was no forecast for their return, I felt a little orphaned and even a little lost. From the fair I sorted out most of my food for the week, I already planned myself in a way, I knew more or less what I was going to find there and what to buy. It was my weekly routine to buy some basic foods, such as onions, garlic, beans, rice and also seasonal vegetables and fruit, as well as items such as honey, bread and some cookies. I always returned home with two or even three bags full of various items.

I’ve always been a bit averse to routines or repeating the same routes many times, including shopping. It was a structuring event for my diet and even for my week, because I wouldn’t have to go elsewhere to buy fresh food until the next Saturday. However, I realized that I already had a certain attachment to the routine of going to that fair, and in a very positive sense.

I was sorry not to find the market, but it’s certain that the couple who ran it must have felt a much greater impact, given the losses they had accumulated. I could simply look for another fair or buy food at an organic produce warehouse, it wouldn’t be a big problem. But for the couple and the other producers who also sent products to that stall, the changes would be much more difficult to deal with at the moment. And this made me think with regret about the number of small farmers who have suffered successive losses as a result of climate change and how this is likely to worsen in the coming years, affecting populations in different corners of the world, as various experts have predicted.

Buying food at the agroecological fair also means helping these farmers to continue their work in the fields. In Brazil, it’s not agribusiness with its large areas of land devoted to soy, corn and cotton that feeds the population. It’s the small producers, like that couple and their neighbors, who ensure that most of the fresh food reaches our tables. I’m not sure if the rainfall over the last few months in Santa Catarina, and specifically in the region where the food at the fair is grown, is directly related to the climate crisis, because Santa Catarina is a state of intense, frequent and long-lasting rainfall, at least since I’ve lived here. Even so, what happened to the fair is still a warning sign of an increasingly uncertain future for food, given some of the extreme events we have been witnessing more and more frequently.

#Rip temporário à feira e as mudanças climáticas

Passei os últimos três meses fora de Florianópolis. Uma das coisas que mais me faz sentir “chegar em casa” é comprar a maior parte dos itens para cozinhar na feira agroecológica que acontece uma vez por semana em um bairro não muito distante de onde moro. Cheguei terça-feira na cidade, fiz algumas poucas compras de comida, mas esperei até sábado, dia da semana em que acontece a feira, para então fazer uma compra maior, pensando no que utilizo para cozinhar no período de mais ou menos sete dias. 

Não é que essa seja a única feira da cidade, existem outras até bem maiores e com mais ofertas de alimentos, mas essa é uma feira não tão distante da minha casa, e que já estou habituada a frequentar. É somente uma banca, mantida por um casal que vem de São Bonifácio, cidade próxima a Florianópolis. Sempre troco algumas palavras com eles, damos algumas risadas, me sinto bastante à vontade de comprar ali e contente de ter essa interlocução com quem produz aquilo que como, uma oportunidade cada vez mais rara em muitos contextos urbanos. 

Pois bem, finalmente no sábado pela manhã, cheguei no local da feira, mas o espaço destinado a ela estava absolutamente vazio. Pensei que pudesse ter acontecido um imprevisto com o casal e bem no dia em que eu retornava à feira, mas não era isso. Entrei numa loja de produtos naturais localizada na mesma esquina onde ocorre a feira e perguntei se alguém tinha alguma informação do porque a banca não estava ali. Para minha surpresa, a resposta que obtive é que havia algum tempo a feira já não estava funcionando ali. A explicação foi que, devido às chuvas intensas em Santa Catarina nos últimos dois meses, os proprietários da banca perderam muitos alimentos. Em razão disso, decidiram primeiro construir uma estufa para cultivar os alimentos, garantir que não teriam mais prejuízos, e só depois disso retomariam o trabalho na feira. 

Quando recebi a notícia de que não havia previsão para a volta deles, me senti um pouco órfã e até mesmo um pouco perdida. A partir da feira eu resolvia a maior parte da minha alimentação durante a semana, já me programava de certa forma, sabia mais ou menos o que iria encontrar ali e o que comprar. Era minha rotina semanal para comprar alguns alimentos básicos, como cebola, alho, feijão, arroz e também verduras, legumes e frutas da estação, além de itens como mel, pão e algum biscoito. Sempre voltava com duas ou até mesmo três sacolas cheias de itens variados para casa. 

Sempre fui um pouco avessa a rotinas ou a repetir muitas vezes os mesmos percursos, incluindo locais de compras. Era um evento estruturante da minha alimentação e mesmo da minha semana, porque não precisava recorrer a outros lugares para comprar alimentos frescos até o próximo sábado. No entanto, percebi que eu já tinha um certo apego à rotina de ir àquela feira e num sentido muito positivo. 

Lamentei não encontrar a feira, mas é certo que o casal que a mantinha deve ter sentido um impacto bem maior, dados os prejuízos que acumularam. Eu poderia simplesmente buscar uma nova feira ou comprar alimentos em um entreposto de produtos orgânicos, não seria um grande problema. Já para o casal e para outros produtores que também enviavam produtos para aquela banca, as mudanças seriam bem mais difíceis de contornar neste momento. E isso me fez pensar com pesar na quantidade de pequenos agricultores que vêm tendo prejuízos sucessivos com as mudanças do clima e como isso tende a se agravar nos próximos anos, afetando populações nos diferentes cantos do mundo, conforme vêm prevendo diversos especialistas. 

Comprar os alimentos na feira agroecológica também significa colaborar para que esses agricultores possam seguir seu trabalho no campo. No Brasil, quem alimenta a população não é o agronegócio com suas grandes áreas de terra destinadas à soja, milho e algodão. São os pequenos produtores, a exemplo daquele casal e de seus vizinhos, que garantem a chegada da maior parte dos alimentos frescos em nossa mesa. Não tenho certeza se essas chuvas nos últimos meses em Santa Catarina e, especificamente, na região onde são cultivados os alimentos da feira, têm relação direta com a crise climática, pois Santa Catarina é um estado de chuvas intensas, frequentes e duradouras, ao menos desde que moro por aqui.  Mesmo assim, o que ocorreu com a feira não deixa de ser um sinal de alerta para um futuro cada vez mais incerto com relação à alimentação, dados alguns eventos extremos que temos presenciado de forma cada vez mais frequente associados ao avanço da crise climática. 

Comida · Food

Food, food waste and what I’ve learned over the years

Foto: Jean-Christophe Verhaegen/AFP Fonte: Fao.org


In recent years, especially since I started researching the topic of sustainability in relation to food and wine production, I have come to see food waste through a magnifying glass. At the same time, in my daily life, I began to feel increasingly uncomfortable with this waste and a need to get around it, at least in terms of the possibilities I have in this regard.

A series of events made me more open to changing my habits in order to avoid food waste. The fact that I have embraced vegetarianism for several years has helped me expand my food repertoire and deal with food in a different way. When cooking, I began to make the most of vegetables and fruit, incorporating their peelings, stalks and leaves into recipes, i.e. parts of the plant that are usually discarded. For example, I started cooking pumpkin with the peel on, using the stalks of broccoli, cauliflower and parsley, as well as leaves such as beet and celery.

Over time, as I began to delve deeper into academic research related to the issues surrounding the production of waste based on the theme of sustainability, I adopted another tactic. Instead of buying food with a view to creating certain recipes, I started cooking mainly from what I buy at the agroecological market at the end of the week.

As a result, I got into the habit of conditioning my diet to the seasonality of fruit and vegetables. In addition, I’ve started to avoid throwing food away or letting it spoil without making use of it, and one of the solutions to prevent this from happening has been to reduce the amount of food I buy. Freezing surplus food or ingredients has also become a resource in the same sense.

Perhaps these examples are absolutely basic or minimal in terms of sustainability in the kitchen, but little by little I’m learning more about the subject and trying to improve myself. I’ve never really considered myself an environmental activist, not least because actions in this direction go far beyond the kitchen. Apart from that, I confess that, despite all my efforts, I don’t always manage to follow all these self-imposed “rules” to the letter. Sometimes I end up buying too much food and many of these foods don’t wait with the same vitality until I feel like including them in a recipe or some other unforeseen situation causes me to postpone their consumption, such as having a craving for some other food or even choosing to eat some meals away from home.

According to FAO data, a third of the food produced in the world is lost or wasted every year. Producing food also always involves exploiting the environment, what are known as “natural resources”. Food waste and food loss are also related to greenhouse gas emissions. At a time like today, when the environment is increasingly under pressure, the environmental crisis is intensifying and both hunger and food insecurity still haunt the world, it is totally incoherent to produce food and waste it or let it spoil.

However, it’s true that no one makes the decision to buy food only to not eat it or let it expire in the fridge. Just as eating behavior involves many factors and cannot be simplified, the same is true of food waste. David Evans, in the book Food Waste, the result of his research on this subject, points out that, in domestic consumption, food becomes “surplus” as a result of processes that are related to factors that include everything from the ways in which food is made available in supermarkets (for example, packages with a large volume of a particular food), to domestic routines that include definitions of what is adequate food, and does not necessarily have to do with the intention to waste food, with irresponsibility or not caring about this waste.

What’s more, it’s always good to remember that it’s not just in the domestic environment that food is wasted or lost. This process starts much earlier, in the fields, where food is produced, and also includes the handling and transportation stages, supply centers, supermarkets and consumers. Not that this absolves families or individuals of their responsibility and the need to cultivate more conscious consumption, but the issue must be looked at and dealt with from a much broader perspective, involving specific policies, planning and technologies.

Another point is that the approach cannot be generalized, since food waste in the domestic environment is much higher in more economically advantaged countries, where people have greater purchasing power. According to the FAO, waste in developed countries is as high as 40% in the final chain. In developing countries, the biggest problem is food loss related to a lack of planning and conservation technologies.

To conclude, although the problem of food waste or loss is complex and its incidence cannot be generalized, the fact is that its consequences have contributed to exacerbating problems in the social, environmental, cultural and economic spheres, with increasingly global repercussions. In recent months, unfortunately, extreme weather events around the world have shown that these consequences are no longer just a prediction for a distant future.

Comida, desperdício alimentar e o que venho aprendendo ao longo dos anos

Nos últimos anos, especialmente depois que comecei a pesquisar o tema da sustentabilidade relacionado à alimentação e à produção de vinhos, passei a enxergar o desperdício alimentar com uma lente de aumento. Ao mesmo tempo, no meu cotidiano, comecei a sentir um incômodo cada vez maior com esse desperdício e uma necessidade de contorná-lo, ao menos no que diz respeito às possibilidades que tenho nesse sentido. 

Uma sucessão de fatos fez com que eu me tornasse mais permeável à mudança de hábitos relacionada a evitar o desperdício de alimentos. O fato de ter abraçado o vegetarianismo por vários anos ajudou a expandir meu repertório alimentar e a lidar com os alimentos de uma outra forma. Ao cozinhar, comecei a aproveitar ao máximo legumes, verduras e frutas, incorporando nas receitas suas cascas, talos, folhas, ou seja, partes da planta que geralmente são descartadas. Por exemplo, passei a cozinhar a abóbora com a casca, a utilizar os talos do brócoles, da couve-flor, da salsa e também folhas, como as da beterraba e as do aipo. 

Com o passar do tempo, à medida que comecei a mergulhar mais a fundo na pesquisa acadêmica relacionada às problemáticas envolvendo a produção de resíduos a partir do tema da sustentabilidade, adotei uma outra tática. Em vez de comprar os alimentos pensando em criar determinadas receitas, passei a cozinhar principalmente a partir do que compro na feira agroecológica aos finais de semana e do que tenho disponível na minha geladeira.

Dessa forma, criei o hábito de condicionar minha alimentação também à sazonalidade de frutas, legumes e verduras. Além disso, passei a evitar ao máximo jogar alimentos fora ou deixar que estraguem sem aproveitá-los e uma das soluções para isso não acontecer foi reduzir a quantidade de alimentos comprados. O congelamento de excedentes de comida ou de ingredientes também se tornou um recurso no mesmo sentido. 

Talvez esses exemplos sejam absolutamente básicos ou mínimos, em termos de sustentabilidade na cozinha, mas aos poucos vou aprendendo mais sobre o assunto e tentando me aprimorar. Nunca me considerei propriamente uma ativista ambiental, até porque ações nesse sentido vão muito além da cozinha. Afora isso, confesso que, apesar de todos os meus esforços, nem sempre consigo seguir todas essas “regras” autoimpostas à risca. Algumas vezes, acabo comprando alimentos demais e muitos desses alimentos não esperam com a mesma vitalidade até que eu tenha vontade de incluí-los em uma receita ou que alguma outra situação não prevista me faça adiar o seu consumo, como ter vontade de comer alguma outra comida ou mesmo optar por fazer algumas refeições fora de casa. 

Segundo dados da FAO, um terço da comida produzida no mundo é perdida ou desperdiçada todos os anos. Produzir alimentos também envolve sempre explorar o meio ambiente, o que se chama “recursos naturais”. O desperdício de alimentos e a perda de alimentos também estão relacionados a emissões de gases de efeito estufa. Em uma época como a de hoje, em que o meio ambiente está cada vez mais sob pressão, a crise ambiental vem se acirrando e tanto a fome quanto a insegurança alimentar ainda assombram o mundo, é totalmente uma incoerência produzir alimentos e desperdiçá-los ou deixar que estraguem. 

Mas é certo que ninguém toma a decisão de comprar alimentos para não os consumir ou deixar que percam sua validade na geladeira. Assim como o comportamento alimentar envolve muitos fatores, não podendo ser simplificado, o mesmo ocorre com o desperdício ou a perda de alimentos. David Evans, no livro Food Waste, resultante de sua pesquisa sobre este tema, ressalta que, no consumo doméstico, alimentos tornam-se “excedente” como resultado de processos que tem relação com fatores que incluem desde as formas como os alimentos são disponibilizados nos supermercados (por exemplo, embalagens com grande volume de um determinado alimento), até rotinas domésticas que incluem as definições sobre o que é alimentação adequada, e não necessariamente tem a ver com a intenção de se desperdiçar alimentos, com uma irresponsabilidade ou não se importar com esse desperdício. 

Além do mais, é sempre bom lembrar que não é apenas no ambiente doméstico que ocorre o desperdício ou a perda de alimentos. Esse processo começa bem antes, desde o campo, onde são produzidos os alimentos, e inclui ainda as etapas de manuseio e transporte, as centrais de abastecimento, os supermercados até chegar nos consumidores. Portanto, não que isso isente a responsabilidade de famílias ou indivíduos e da necessidade de cultivarem um consumo mais consciente, mas a questão deve ser observada e tratada de uma perspectiva bem mais ampla, envolvendo políticas específicas, planejamento e tecnologias. 

Um outro ponto é que não se pode generalizar o enfoque, já que o desperdício alimentar no ambiente doméstico é muito maior em países mais favorecidos economicamente, em que os indivíduos tem maior poder aquisitivo. Segundo a FAO, o desperdício em países desenvolvidos chega a ser de 40% na cadeia final. Nos países em desenvolvimento, o problema maior é a perda de alimentos relacionada à falta de planejamento e tecnologias de conservação. 

Para concluir, se o problema do desperdício ou perda alimentar é algo complexo e, ao mesmo tempo, não se pode generalizar a sua incidência, o fato concreto é que, as suas consequências vêm contribuindo para acirrar problemáticas em âmbitos social, ambiental, cultural e econômico com repercussão cada vez mais global. Nos últimos meses, infelizmente, eventos climáticos extremos ao redor do mundo vêm mostrando que essas consequências já não são mais somente uma previsão para um futuro distante. 

Comida · Food · Food movies

Movies about food are also good for thinking

Yesterday I watched the French movie “Delicious: From the Kitchen to the World”. I watched it a little late because the movie was released in 2021. After the pandemic, I’ve rarely been to the movies and I’ve increasingly adopted the habit of watching movies on streaming platforms, so I’m conditioned to the release of movies on these platforms.

This is a story set months before the French Revolution. The movie portrays the privileges of an aristocracy that ended up provoking a popular uprising and the fall of the monarchy in France. In short, a cook working for a duke is fired because he decided to innovate by adding potatoes to one of his recipes – an ingredient restricted to consumption by the poorest at the time. The alternative he found to continue his trade was to open a restaurant.

The art direction is impeccable. There are some striking scenes that evoke still life paintings, taking us back to various classics of painting. Art within art.

The movie portrays a time when restaurants were born in France. It’s a love story, but above all for cooking and food. The plot doesn’t leave us long without images of the kitchen, the ingredients, the preparation of meats, breads, desserts and everything else that feeds the imagination related to food.

The film also extols classic French gastronomy, the rigor of its cooking techniques, the predominant use of butter, the refinement of the dishes, among other characteristics that to this day refer to this cuisine as an important pillar of world gastronomy.

Watching the movie, I remembered the opinion I had given the week before on an article for an academic journal on “Brazilian gastronomy”. Among other things, the text mentioned the influence of nouvelle cuisine on the appreciation of biodiversity in Brazilian gastronomy from the 1970s onwards, driven by the visit of some French chefs to Brazil during this period.

As well as noticing the reaffirmation of a certain colonialist viewpoint when referring to these chefs and their “discovery” of ingredients to be valued in the country’s cuisine, the text made me think about how the primer of French gastronomy is exalted in order to think about the gastronomy practiced in Brazil.

The idea that France is or always has been the epicenter of world gastronomy ends up explicitly or implicitly nourishing some discourses related to gastronomy in Brazil, despite important references, not only from indigenous, African and Portuguese cuisines, which have shaped food in the country, but also those related to immigrant cuisines. Added to this are the changes that have taken place since the 1970s and 1980s, when globalization processes intensified and were reflected in the various cuisines around the world, extending to Brazil.

Films with food as their central theme, as well as whetting our appetite or whetting our taste buds, can serve as a motivation to reflect on the kitchen as a space that is not just about following certain ready-made recipes.

Filmes sobre comida também são bons para pensar 

Ontem assisti ao filme francês “Delicioso: Da Cozinha para o Mundo”.  Assisti um pouco em atraso porque o filme foi lançado em 2021. Depois da pandemia, tenho ido raramente ao cinema e tenho adotado cada vez mais o hábito de assistir filmes em plataformas de streaming e por isso fico condicionada ao lançamento dos filmes nessas plataformas.

Trata-se de uma história ambientada meses antes da revolução francesa. O filme retrata os privilégios de uma aristocracia que acabaram provocando uma insurgência popular e a queda da monarquia na França. Resumidamente, um cozinheiro que trabalhava para um duque é demitido porque resolveu inovar colocando batata em uma das receitas – ingrediente restrito ao consumo pelos mais pobres à época. A alternativa encontrada para seguir com seu ofício foi abrir um restaurante.

A direção de arte é impecável. Chamam a atenção algumas cenas que evocam quadros com imagens de natureza morta nos reportando a diversos clássicos da pintura. A arte dentro da arte.  

O filme retrata uma época em que justamente nasceram os restaurantes na França. É uma história de amor, mas sobretudo pela cozinha e pela comida. O enredo não nos deixa muito tempo sem imagens da cozinha, dos ingredientes, do preparo das carnes, pães, sobremesas e tudo o que alimenta o imaginário relacionado à comida. 

O filme também exalta a gastronomia francesa clássica, o rigor das suas técnicas culinárias, a predominância do uso da manteiga, o refinamento dos pratos, entre outras características que até hoje referenciam essa cozinha como um pilar importante da gastronomia mundial. 

Assistindo ao filme lembrei do parecer que eu havia feito na semana anterior sobre um artigo para uma revista acadêmica que abordava “gastronomia brasileira”. Entre outros aspectos, o texto mencionava a influência da nouvelle cuisine para a valorização da biodiversidade na gastronomia brasileira a partir da década de 1970, impulsionada pela visita de alguns chefs franceses ao Brasil nesse período. 

Afora perceber a reafirmação de uma certa ótica colonialista ao fazer referência a esses chefs e a sua “descoberta” de ingredientes a serem valorizados na culinária do país, o texto me fez pensar em como a cartilha da gastronomia francesa é exaltada para se pensar a gastronomia praticada no Brasil.  

A ideia de que a França é ou sempre foi o epicentro da gastronomia mundial acaba nutrindo de forma explícita ou implícita alguns discursos relacionados à gastronomia no Brasil, apesar de referências importantes, não somente das cozinhas indígena, africana e portuguesa, que configuraram a alimentação no país, mas também daquelas relacionadas a culinárias de imigrantes. Somam-se a isso as mudanças ocorridas a partir das décadas de 1970 e 1980, quando houve uma intensificação dos processos relacionados à globalização refletindo-se nas diversas cozinhas ao redor do globo, estendendo-se ao Brasil. 

Os filmes que possuem a comida como tema central, além de nos abrir o apetite ou aguçar nosso paladar, podem servir de motivação para se refletir sobre a cozinha como um espaço que não se resume a seguir a cartilha de certas receitas prontas.